Por Liz Estudino
A exposição midiática de investigados e acusados tem se tornado um problema recorrente no sistema penal brasileiro. Muitas vezes, antes mesmo de qualquer decisão judicial, nomes de pessoas envolvidas em investigações são amplamente divulgados na imprensa e em bases de dados públicas e privadas, gerando impactos irreversíveis para a vida do investigado.
Essa prática viola os direitos fundamentais e compromete o princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Na realidade, porém, vemos um cenário diferente. A simples inclusão do nome de um indivíduo em um inquérito policial pode resultar em estigmatização social, prejudicando sua reputação, oportunidades de emprego e vida pessoal, mesmo que ao final da investigação o inquérito policial seja arquivado.
E o acesso indiscriminado a tais publicações jornalísticas acaba perpetuando esse estigma, tornando a recuperação da imagem dessas pessoas extremamente difícil.
Acontece que a mera instauração de um inquérito policial não deve ser confundida com uma condenação antecipada, pois a investigação e o devido processo legal ainda não concluíram pela materialidade do crime, nem pela responsabilidade do investigado.
Os tribunais superiores brasileiros, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), têm entendimento consolidado de que inquéritos policiais ou ações penais sem trânsito em julgado não podem ser considerados como maus antecedentes. Por extensão, nomes de investigados sem condenação definitiva não devem constar em certidões de antecedentes criminais, preservando-se assim o princípio da presunção de inocência.
O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de analisar a situação, no julgamento do Habeas Corpus nº 96.618, ao destacar que, na ausência de condenação definitiva, processos em andamento não podem ser usados como argumento de maus antecedentes criminais. Em outras palavras, ressaltou-se que a mera existência de investigações ou ações penais em curso não é suficiente para justificar a majoração ou imposição de sanções mais gravosas, como a decretação de prisão cautelar.
Daí porque a existência de inquéritos policiais ou até mesmo ações penais sem trânsito em julgado não pode ser considerada como maus antecedentes na dosimetria da pena, de maneira a reforçar o entendimento de que registros sem condenação definitiva não devem constar nas certidões de antecedentes criminais:
PENAL. HABEAS CORPUS. FIXAÇÃO DE PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. POSSIBILIDADE. PREMEDITAÇÃO. MOMENTO DE ANÁLISE. MAUS ANTECEDENTES. FOLHA DE ANTECEDENTES CRIMINAIS. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. DESRESPEITO. OCORRÊNCIA. ORDEM CONCEDIDA. I – O magistrado, ao fixar a pena-base dos pacientes, observou fundamentadamente todas as circunstâncias judiciais constantes do art. 59 do Código Penal, o que justifica o quantum acima do mínimo legal. II – A premeditação é analisada quando da fixação da pena-base, tal como ocorreu na espécie. III – Inquéritos ou processos em andamento, que ainda não tenham transitado em julgado, não devem ser levados em consideração como maus antecedentes na dosimetria da pena. IV – Ordem concedida. (HC 94620, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 24/06/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-236 DIVULG 23-11-2015 PUBLIC 24-11-2015)
É preciso destacar que, conforme a Lei nº 12.830/2013, o indiciamento é um ato privativo do delegado de polícia e deve ser fundamentado, indicando autoria, materialidade e suas circunstâncias. Trata-se, porém, de ato administrativo que não vincula qualquer apreciação do Ministério Público, a quem compete decidir pelo oferecimento ou não da denúncia.
Um aspecto muitas vezes negligenciado, mas de extrema importância para a efetivação da presunção de inocência, é o desindiciamento – ou seja, o cancelamento do indiciamento de uma pessoa em um inquérito policial. Esse cancelamento se faz necessário em diversas situações, especialmente quando (i) o Ministério Público promove o arquivamento do inquérito policial, (ii) a denúncia é rejeitada pelo Poder Judiciário ou (iii) sobrevém uma decisão absolutória.
O arquivamento do inquérito ocorre quando o Ministério Público entende que não há elementos suficientes para propor uma ação penal, o que pode ocorrer por falta de provas, ausência de materialidade do crime ou por constatação de que o investigado não teve qualquer envolvimento nos fatos apurados.
Já a rejeição da denúncia acontece quando o Juiz, ao analisar a peça acusatória apresentada pelo Ministério Público, conclui que não há justa causa para a ação penal, devido a insuficiência de provas, inépcia da denúncia ou outros motivos que impeçam o prosseguimento da ação penal. Nesses casos, o investigado não chega a ser réu e, portanto, não deveria ter seu nome associado a um procedimento criminal.
A absolvição, por sua vez, representa o reconhecimento judicial de que o acusado não cometeu o crime ou que não há provas suficientes para condenação. Mesmo assim, é comum que registros do inquérito e da ação penal permaneçam disponíveis em bancos de dados oficiais e privados, perpetuando o estigma de uma acusação infundada. Para garantir a plena aplicação do princípio da presunção de inocência, é fundamental que, após a absolvição, o nome do investigado seja retirado de quaisquer registros criminais que possam comprometer sua reputação.
A formalização do indiciamento se dá por meio do Boletim de Identificação Criminal (BIC), que no Estado de São Paulo é gerido pelo Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (IIRGD). Assim, é fundamental que as comunicações sobre desindiciamento e arquivamento sejam corretamente realizadas para evitar que registros desatualizados continuem a prejudicar investigados que não foram condenados.
A necessidade de manter os bancos de dados criminais sempre atualizados é reconhecida até mesmo pelas Normas Judiciais da Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), mais especificamente em seu artigo 393:
Art. 393. O ofício de justiça obrigatoriamente comunicará ao IIRGD, para as anotações cabíveis, juntamente com a qualificação completa do acusado:
I – o recebimento ou rejeição da denúncia ou da queixa; II – o aditamento da inicial; III – a inclusão, nas denúncias, de pessoas não indiciadas nos inquéritos policiais e nos autos de prisão em flagrante delito; IV – a não inclusão, nas denúncias, de pessoas indiciadas nos inquéritos policiais e nos autos de prisão em flagrante delito; V – o arquivamento do inquérito policial, quando houver indiciamento formal do(s) investigado(s) e o desfecho da ação penal (absolvição, condenação, extinção da punibilidade, etc). (…)
Diante disso, é essencial o acompanhamento dos atos pós-processuais pelo ofício de justiça, mesmo após o arquivamento do inquérito policial, rejeição da denúncia ou absolvição do réu, para garantir que todas essas comunicações sejam devidamente efetivadas.
A presunção de inocência deve ser entendida não apenas como um princípio teórico, mas como uma garantia concreta de que ninguém será punido sem o devido processo legal. Assim, o direito ao esquecimento e o desindiciamento são medidas fundamentais para assegurar a efetivação desse princípio e a proteção da dignidade dos cidadãos.