Por Rafaela Azevedo de Otero
A utilização de inteligência artificial (IA) no sistema judiciário brasileiro tem se expandido para diversas funções, sendo uma delas o juízo de admissibilidade de recursos interpostos aos Tribunais Superiores, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ). O juízo de admissibilidade é a fase processual que antecede o exame do mérito do recurso, em que se verifica se o recurso atende aos requisitos formais e materiais para ser aceito. Nesse contexto, a aplicação de IA visa, inicialmente, otimizar o trabalho dos tribunais, agilizando a análise de recursos e evitando a sobrecarga dos ministros e desembargadores. No entanto, essa inovação traz consigo preocupações significativas, especialmente em relação ao direito de defesa e aos princípios fundamentais, como o direito à liberdade, que não podem ser restringidos por sistemas automatizados.
A IA no juízo de admissibilidade: agilidade ou cerceamento de defesa?
O juízo de admissibilidade dos recursos é uma fase crucial para garantir o direito de acesso à justiça. Ele determina se o recurso será analisado pelo tribunal superior, sendo uma porta de entrada para o reexame de decisões de instâncias inferiores. Tradicionalmente, essa análise é realizada por juízes ou ministros, que examinam questões técnicas e formais, mas também têm a capacidade de interpretar as circunstâncias e peculiaridades de cada caso. Com a introdução da IA nesse processo, há um risco real de que essa análise se torne excessivamente automatizada e despersonalizada.
A IA, quando aplicada no juízo de admissibilidade, pode ser utilizada para verificar automaticamente o cumprimento de requisitos formais, como prazos, a correção do preenchimento de formulários e o atendimento a normas processuais. Em princípio, isso poderia agilizar o andamento dos processos e reduzir a carga de trabalho dos juízes. No entanto, o risco de cerceamento da defesa surge quando sistemas automatizados tomam decisões de forma independente, sem a intervenção humana que pode avaliar o contexto mais amplo e as nuances do caso concreto.
A automação desse juízo pode resultar em recusas de admissibilidade baseadas em erros formais, sem uma análise profunda do caso. Mesmo que um recurso tenha mérito e relevância, a decisão automatizada pode ser tomada com base em parâmetros predefinidos e inflexíveis. Isso pode impedir que recursos legítimos, que busquem a revisão de decisões que comprometem direitos fundamentais, sejam sequer analisados pelo Tribunal Superior. Assim, a IA pode se tornar um obstáculo ao direito de defesa, em vez de um meio para facilitá-lo.
O direito à liberdade e os direitos humanos em conflito com formalidades processuais
Ao comparar os direitos e garantias humanos com as formalidades processuais, especialmente em casos que envolvem liberdade, como os processos criminais, é evidente que a aplicação estrita de normas formais não pode se sobrepor à proteção dos direitos fundamentais. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, garante, entre outros, o direito à ampla defesa, ao contraditório e à liberdade. Esses direitos são essenciais para garantir que qualquer indivíduo, especialmente no âmbito criminal, tenha a oportunidade de se defender adequadamente, contestar acusações e evitar a privação injusta de liberdade.
O direito à liberdade, um dos pilares dos direitos humanos, não pode ser restringido com base exclusivamente em uma análise formalista ou automatizada, como a que a IA pode realizar em um juízo de admissibilidade. O uso de IA para filtrar e selecionar recursos pode levar a decisões rápidas e impessoais, que negligenciam o caráter humanitário da análise processual. Casos que envolvem a liberdade de um indivíduo exigem uma abordagem mais cuidadosa e sensível às circunstâncias que envolvem a privação de um direito fundamental, e isso não pode ser delegado a um sistema automatizado.
A formalidade processual é importante, mas ela deve ser vista como um meio para garantir a justiça, não como um fim em si mesma. Quando a IA é utilizada para automatizar o juízo de admissibilidade, corre-se o risco de que aspectos fundamentais do processo, como a revisão das circunstâncias fáticas e a interpretação da norma jurídica, sejam negligenciados em favor de uma eficiência superficial. Em processos criminais, onde a liberdade do réu pode estar em jogo, a garantia de que sua defesa será adequadamente considerada é uma exigência constitucional e internacional, como preveem a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que asseguram que nenhum indivíduo deve ser privado de sua liberdade sem o devido processo legal.
Assim, com automatização por IA do juízo de admissibilidade é automatizado por IA, a defesa pode ser prejudicada, pois a análise formal dos requisitos processuais pode levar à exclusão de recursos de forma prematura. Esse tipo de decisão, tomada sem um exame aprofundado do contexto do caso, pode impedir que questões relevantes sejam levadas ao tribunal superior, comprometendo a efetividade do direito de defesa.
Em alguns casos, a automatização pode resultar na rejeição de recursos em razão de falhas técnicas que não comprometem a substância do pedido. Por exemplo, um erro de digitação em um formulário ou uma falha no preenchimento de um campo pode ser suficiente para que um recurso seja inadmitido, sem que o conteúdo da petição seja sequer considerado. Isso configura um cerceamento de defesa, pois a decisão de não admitir o recurso pode ocorrer sem uma análise justa e profunda da necessidade de revisão da decisão de instância inferior.
Conclusão
A utilização de IA no juízo de admissibilidade dos recursos aos Tribunais Superiores apresenta tanto vantagens quanto riscos. Por um lado, a tecnologia pode contribuir para a eficiência e agilidade do sistema judiciário, mas, por outro lado, pode levar ao cerceamento do direito de defesa, especialmente em casos que envolvem a liberdade do réu. A análise automatizada pode se tornar um obstáculo para o exercício pleno da defesa, ao substituir a avaliação crítica e humana das circunstâncias do caso concreto.
É imperativo que o uso de IA no Judiciário seja cuidadosamente regulamentado, garantindo que os direitos fundamentais, especialmente o direito à liberdade, sejam sempre protegidos. O direito à ampla defesa, ao contraditório e à revisão das decisões judiciais não pode ser subordinado a formalidades processuais rígidas e impessoais impostas por algoritmos. A liberdade de um indivíduo não pode ser restringida por robôs, e a justiça deve ser sempre administrada com sensibilidade e atenção aos direitos humanos. O sistema judiciário, mesmo quando assistido por tecnologias, deve permanecer centrado na proteção dos direitos do indivíduo, em consonância com os princípios constitucionais e internacionais que garantem a dignidade da pessoa humana.