03
dez
2024

Implicações da utilização de IA em processos criminais

Por Rafaela Azevedo de Otero

Nos últimos anos, a utilização da inteligência artificial (IA) tem se expandido para diversas áreas, incluindo o sistema judiciário. A promessa de eficiência, celeridade e maior precisão nas decisões judiciais tem sido um dos principais argumentos utilizados para justificar a implementação de sistemas automatizados nos tribunais. No entanto, a aplicação da IA nas decisões judiciais, especialmente em processos criminais, levanta sérias questões sobre os direitos fundamentais dos indivíduos, com destaque para o direito de defesa.

A IA pode ser utilizada de diferentes formas no Judiciário, desde a automação de tarefas administrativas até a análise preditiva de decisões judiciais, passando por sistemas que auxiliam juízes e advogados na recomendação de sentenças com base em dados históricos e parâmetros pré-estabelecidos. Essa automação tem o objetivo de otimizar o tempo dos profissionais da área, reduzir a carga de trabalho e até mesmo minimizar erros humanos, buscando uma maior objetividade e imparcialidade nas decisões.

Entretanto, o uso indiscriminado de IA em processos criminais pode representar um risco significativo para os direitos fundamentais dos réus, especialmente no que se refere ao direito de defesa. A primeira preocupação refere-se à falta de transparência dos algoritmos utilizados. Muitas vezes, os sistemas de IA são baseados em modelos complexos e não explicáveis, conhecidos como “caixas-pretas”, que dificultam a compreensão de como uma decisão foi tomada. Quando um algoritmo é empregado para sugerir sentenças ou avaliar a gravidade de um crime, a falta de clareza sobre os critérios utilizados impede que o réu ou seu advogado compreendam os motivos que levaram a tal decisão, comprometendo o direito de defesa e a possibilidade de contestação.

Além disso, a IA pode reforçar preconceitos e discriminações existentes na sociedade, uma vez que os sistemas de aprendizado de máquina são alimentados por dados históricos, que muitas vezes refletem desigualdades estruturais, como a discriminação racial, social e econômica. Se um algoritmo for treinado com base em dados de processos criminais que envolvem um histórico de sentenças mais severas para determinados grupos sociais, ele pode perpetuar essas desigualdades, exacerbando a discriminação no processo judicial. Esse viés algorítmico pode resultar em decisões desproporcionais e injustas, prejudicando aqueles que já estão em desvantagem no sistema judiciário.

Outro ponto crucial é a dependência do ser humano na avaliação crítica do processo decisório. Embora a IA possa fornecer sugestões ou análises quantitativas, a interpretação dos fatos e a aplicação das normas jurídicas exigem uma compreensão holística e empática da situação, algo que a máquina, por mais avançada que seja, não consegue reproduzir com a mesma profundidade. A ausência dessa interpretação subjetiva pode resultar em decisões frias, automatizadas, que não consideram a complexidade humana dos casos criminais. Esse distanciamento do juiz, que se vê cada vez mais dependente de sugestões tecnológicas, pode enfraquecer a natureza personalizada e humanizada da justiça, essencial para garantir o respeito aos direitos fundamentais e a dignidade do réu.

Ademais, a implementação de IA em processos criminais pode gerar um falso senso de imparcialidade, uma vez que a objetividade da máquina pode ser interpretada como uma garantia de justiça. Contudo, como já mencionado, a imparcialidade dos sistemas de IA depende da qualidade e da imparcialidade dos dados com os quais são treinados. Assim, um algoritmo que não seja adequadamente auditado ou desenvolvido com critérios éticos claros pode reforçar discriminações e desigualdades, afetando diretamente o direito de defesa do réu, que pode não ter acesso a informações suficientes para questionar a atuação do sistema.

A utilização da IA, portanto, exige um cuidado redobrado no campo do direito penal, pois a automatização das decisões pode comprometer a ampla defesa e o contraditório, garantias constitucionais previstas no artigo 5º da Constituição Federal. É imprescindível que os operadores do direito, incluindo advogados e juízes, possuam a capacidade de entender e contestar as decisões tomadas por sistemas automatizados, o que só é possível com uma maior transparência nos processos decisórios. Nesse contexto, a implementação de uma IA que permita ao réu e à sua defesa compreenderem as razões que levaram a determinada decisão é essencial para que o processo continue sendo justo e equilibrado.

Em suma, a utilização de IA nas decisões judiciais, especialmente em processos criminais, representa um avanço tecnológico significativo, mas que deve ser acompanhado de um profundo debate ético, jurídico e social. O direito de defesa não pode ser comprometido pela adoção de tecnologias que funcionem de forma opaca, injusta ou discriminatória. Assim, é fundamental que a IA no Judiciário seja utilizada de maneira responsável, com a devida supervisão humana, transparência nos algoritmos e mecanismos de correção de viés, a fim de preservar os direitos dos réus e garantir um processo judicial que, além de eficiente, seja justo e equitativo para todos.