28
abr
2025

Racismo no Futebol – Caso Luighi

No dia 6 de março de 2025, em Assunção, durante partida da Libertadores Sub-20 entre Cerro Porteño (PAR) e Palmeiras, o atacante Luighi foi alvo de gestos criminosos — imitações de macaco e até cusparadas — praticados por torcedores adversários. Sentindo-se em ambiente hostil e impossibilitado de exercer sua função, Luighi deixou o campo em lágrimas e, ao término, indagou: “até quando o futebol vai admitir isso?”.

O episódio, amplamente repercutido pela imprensa e pelas redes sociais, motivou o Palmeiras a registrar denúncia junto à Conmebol e à CBF. Luighi ainda recebeu manifestações de apoio de companheiros profissionais e do presidente da República, que classificou o ato como “vergonhoso”.

Diante de tal repercussão, é nítido que a sociedade brasileira repudia especialmente crimes com motivação racial. Não por outro motivo, no plano jurídico brasileiro, o racismo é tratado pela Constituição como crime “inafiançável e imprescritível” (art. 5º, XLII).

Além disso, a Lei 7.716/1989 (“Lei do Crime Racial”) define, em seu art. 2º-A, a pena de 2 a 5 anos para quem praticar injúria racial, isto é, “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.”.

Em fevereiro de 2023, a Lei 14.532/2023 equiparou a pena da injúria racial ao racismo, elevando sua pena e proibindo o infrator de frequentar o local em que foi praticado o crime, caso tenha sido em locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público. O reconhecimento também se deu no âmbito da Suprema Corte:

“A injúria racial consuma os objetivos concretos da circulação de estereótipos e estigmas raciais ao alcançar destinatário específico, o indivíduo racializado, o que não seria possível sem seu pertencimento a um grupo social também demarcado pela raça. Aqui se afasta o argumento de que o racismo se dirige contra grupo social enquanto que a injúria afeta o indivíduo singularmente. A distinção é uma operação impossível, apenas se concebe um sujeito como vítima da injúria racial se ele se amoldar aos estereótipos e estigmas forjados contra o grupo ao qual pertence. (…)
Inegável que a injúria racial impõe, baseado na raça, tratamento diferenciado quanto ao igual respeito à dignidade dos indivíduos. O reconhecimento como conduta criminosa nada mais significa que a sua prática tornaria a discriminação sistemática, portanto, uma forma de realizar o racismo”
(STF, HC 154248, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. 28.10.2021, publ. 23.02.2022)

Em tese, o crime praticado contra Luighi seria justamente a injúria racial e o dispositivo legal destinado a coibi-lo tem como bem jurídico tutelado a honra subjetiva e a imagem de indivíduos pertencentes a “grupos minoritários historicamente discriminados” (STJ, HC 929002/AL, Rel. Min. Og Fernandes, 6ª Turma, j. 04.02.2025, DJEN 10.02.2025).

A honra subjetiva nada mais é do que a opinião de que a vítima tem de si mesma. Sobre as formas de ofender essa tal opinião pessoal e convicção íntima de si próprio, a lei define duas modalidades de injúria: a que o ofende a dignidade e a que ofende o decoro. Enquanto a primeira trata do amor próprio da vítima, a segunda trata de sua correção moral.

Para atingir a norma penal, ou seja, praticar a conduta tipificada na legislação, o autor teria que manifestar uma conduta (que pode ser por palavras, gestos, por exemplo) de ofender ou insultar a vítima em razão de raça ou cor, com a intenção de fazê-lo. A intenção deve ser devidamente provada nos autos do processo criminal, para ensejar a condenação e, em casos em que o autor visa a zombar da vítima (animus jocandi), a injúria racial também pode se aplicar.

No âmbito desportivo, noutro giro, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva prevê, em seu art. 243-G, que “praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de […] raça” sujeita o autor, seja atleta ou torcedor, a suspensão de 5 a 10 jogos (ou 120 a 360 dias, no caso de não-atletas), bem como multa de R$ 100 a R$ 100.000, além de proibir o ingresso do torcedor identificado por, no mínimo, 720 dias. Na hipótese de ser praticado por agentes pertencentes a grupo de torcida organizada, o clube pode perder pontos ou até ser excluído da competição.

De qualquer modo, em respeito aos princípios jurídicos do devido processo legal e individualização das condutas, a aplicação dessas sanções requer a individualização da conduta e respeito ao contraditório, sob pena de nulidade do processo desportivo. A responsabilidade de cada torcedor deve ser auferida individualmente, não podendo o grupo ser condenado por uma conduta praticada “por todos”, sem análise pormenorizada de cada uma das condutas, dolo, extensão dos danos ao bem jurídico, etc.

Ainda no âmbito desportivo, após o episódio, o Palmeiras encaminhou ofício à CONMEBOL, que inicialmente puniu o Clube Cerro Porteño com multa de US$ 50.000, além de portões fechados em jogos da Libertadores Sub-20. A CBF, por sua vez, manifestou apoio ao atleta e sugeriu medidas mais duras, chegando a cogitar a exclusão do adversário em caso de reincidência! Tais medidas demonstram, inclusive, que os casos de racismo reiteradamente praticados no futebol têm acarretado sanções administrativas para todos os torcedores e para o Clube, na esperança que os agentes se sintam desencorajados a praticar as condutas delituosas.

Por outro lado, quanto à possível penalização penal dos responsáveis, existem hipóteses de jurisdição internacional e brasileira que permitem ao Estado brasileiro processar e aplicar pena a torcedores estrangeiros que praticaram racismo contra atleta brasileiro.

Segundo o artigo art. 7º, II, “a”, ficam sujeitos à lei brasileira, quando cometidos no estrangeiro, os crimes que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir. Considerando que o Brasil assinou tratado internacional contra a injúria racial, como a Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD), que em seu artigo II, obriga os Estados-partes a condenar “a discriminação racial e comprometem-se a adotar, por todos os meios apropriados e sem tardar uma política de eliminação da discriminação racial em tôdas as suas formas e de promoção de entendimento entre tôdas as raças e para êsse fim.”

A partir desse dever, a Polícia Federal tem atribuição de instaurar Inquérito Policial para investigar o crime, principalmente colhendo para desvendar a identidade dos agentes. Afinal, para que o Ministério Público Federal possa oferecer denúncia contra os supostos criminosos, exercendo sua função de órgão acusatório em ações penais de natureza pública – como é o caso de crimes de injúria racial – a identidade dos autores deve ser, necessariamente, conhecida. Adicionalmente, todas as circunstâncias do crime devem ser descritas ao Juízo Federal Criminal. Daí a importância de uma investigação que ouça testemunhas, envie os registros em vídeo para peritos criminais, etc.

Assim, caso o(s) torcedor(es) identificado(s) fossem condenados pelo Estado Brasileiro, poderiam cumprir a pena no Brasil ou no Paraguai, considerando que o país hispano-americano regulou a sua obrigação de respeitar a jurisdição universal dos países membros da ONU em caso de apenamento de indivíduos paraguaios por crimes considerados relevantes. Essa disposição, encontrada no artigo 7 do “Permanent Mission of the Republic of Paraguay to the United Nations – Information and observations submitted by the Republic of Paraguay on the scope and application of the principle of universal jurisdiction”, publicado no site oficial da ONU, descreve que a limitação à jurisdição nacional não será aplicada quando um pedido de extradição é realizado por país considerado competente em caso de legislação pertinente : Nesse sentido, considerando que o Paraguai também é signatário da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, o Estado brasileiro poderia argumentar por uma obrigação do Paraguai em extraditar os responsáveis condenados pela Lei brasileira, ou pugnar pelo cumprimento de suas penas no próprio Paraguai.

Por fim, é importante destacar que o Brasil dispõe de numerosos instrumentos jurídicos para responsabilizar com rigor quem pratica racismo. A Constituição e as leis infraconstitucionais conferem prioridade de tramitação a processos envolvendo discriminação racial, seja nas varas criminais, seja nas delegacias especializadas, de modo a assegurar celeridade e eficácia na punição. Assim, toda pessoa vítima de ato racista, com o apoio de um advogado ou defensor público habilitado, tem à sua disposição meios para ver seu agressor responsabilizado de forma efetiva. Ao mesmo tempo, em face das elevadas sanções previstas — tanto na Lei do Crime Racial (Lei 7.716/1989) e na Lei 14.532/2023, quanto no Código Brasileiro de Justiça Desportiva — e dos princípios constitucionais que tutelam a dignidade da pessoa humana e a igualdade, a constituição de uma defesa técnica qualificada pelo acusado revela-se imprescindível para garantir o devido processo legal e possibilitar a ampla análise das circunstâncias e das exceções aplicáveis ao caso.

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1 “Limitations on national jurisdiction National jurisdiction shall not be exercised in the following cases: 1. 2. When an appropriate request is made by the International Criminal Court for the surrender of the person; When an appropriate extradition request is made by the State considered competent in the light of relevant legislation”.