11
fev
2025

Retroatividade do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) e a consolidação da jurisprudência no Supremo Tribunal Federal: desafios e reflexões

Por Gabriela de Matos Costa Pinto

O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei 13.964/2019, parte do Pacote Anticrime, com o objetivo de oferecer uma alternativa ao processo penal tradicional. Esse mecanismo possibilita que o Ministério Público (MP) negocie com o réu a não persecução penal em crimes de menor potencial ofensivo, desde que o réu cumpra determinadas condições, como a reparação do dano causado à vítima e à sociedade. Com isso, o ANPP busca proporcionar uma resposta mais célere e eficiente ao crime, ao mesmo tempo em que evita o encarceramento desnecessário em situações onde a pena privativa de liberdade seria desproporcional.

Embora tenha sido formalizado no Brasil por meio do Pacote Anticrime, a ideia de uma negociação penal tem raízes no direito anglo-americano, onde o “plea bargaining”[1] é amplamente utilizado para aliviar a sobrecarga do sistema judiciário, especialmente em países com sistemas penais saturados, como os Estados Unidos. No Brasil, o ANPP foi concebido como uma forma de aliviar tanto o Judiciário quanto o sistema penitenciário, com o intuito de combater a superlotação carcerária e promover uma justiça mais ágil.

A grave crise do sistema carcerário brasileiro, caracterizada pela superlotação e pela ineficácia dos programas de ressocialização, foi um dos fatores que impulsionaram a criação do ANPP. O instituto representa uma solução mais racional e proporcional, permitindo que o réu, em determinados casos, não seja submetido ao processo penal convencional e à prisão, especialmente quando essa medida seria excessiva ou inadequada.

Desde sua introdução, o ANPP gerou debates doutrinários e jurisprudenciais sobre sua aplicação e limites. O Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do julgamento do HC 185.913/DF, tem buscado consolidar entendimentos sobre a retroatividade do benefício, sua aplicação nos processos em andamento e a competência do Ministério Público para oferecê-lo. O STF deixou claro que o MP tem competência para celebrar o acordo, mas que a oferta do ANPP é uma decisão discricionária, ou seja, o réu não tem direito automático ao acordo. O MP deve avaliar se os requisitos do acordo estão presentes, levando em consideração as circunstâncias do caso concreto.

Em relação à retroatividade do ANPP, o STF decidiu que ele pode ser aplicado em processos que estavam em andamento antes da promulgação da Lei 13.964/2019, desde que o pedido seja feito antes do trânsito em julgado da sentença. Isso significa que a defesa do réu pode requerer o benefício, mesmo em casos anteriores à criação do instituto, desde que ainda não tenha sido proferida a sentença definitiva.

Outra questão importante definida pelo STF foi a obrigatoriedade de o MP se manifestar sobre a possibilidade de celebração do ANPP nos casos de processos em andamento, logo após a decisão de recebimento da denúncia. Para os novos processos, o MP deve oferecer o acordo ou motivar a decisão de não oferecê-lo antes do recebimento da denúncia. Essa determinação visa evitar a procrastinação do processo penal, garantindo que o instituto seja utilizado de maneira eficiente, sem ser usado de forma estratégica ou tardia.

Uma questão controversa que ainda gera discussões é se seria possível oferecer o ANPP após o recebimento da denúncia, caso o crime seja reclassificado. O STF tem divergido sobre essa possibilidade, já que o objetivo do ANPP é evitar o início do processo penal. No entanto, a aplicação do instituto ao longo do processo, mesmo após o recebimento da denúncia, pode ser justificada para preservar a liberdade e o estado de inocência do réu. O ministro Alexandre de Moraes questionou essa flexibilização, afirmando que isso contraria a intenção do legislador no Pacote Anticrime, que estabeleceu a fase processual para a celebração do acordo. Por outro lado, o ministro Luís Roberto Barroso argumentou que o ANPP poderia ser aplicado após o recebimento da denúncia em casos em que o MP reconheça a compatibilidade do acordo com as circunstâncias do processo, para evitar a sobrecarga do sistema judiciário.

O STF também determinou que a proposta de ANPP deve ser feita na instância onde o processo se encontra, evitando remessas e atrasos desnecessários, o que contribui para a celeridade processual sem prejudicar o direito de defesa. Essa orientação visa garantir uma aplicação mais eficiente do instituto, mantendo a segurança jurídica dos operadores do direito e a efetividade do sistema penal.

Em síntese, a jurisprudência consolidada pelo STF oferece maior clareza sobre a retroatividade do ANPP, sua aplicação nos processos em andamento e a competência do Ministério Público. As decisões do Supremo buscam equilibrar a necessidade de uma justiça penal mais rápida e eficiente com a preservação dos direitos fundamentais dos réus, contribuindo para a redução da superlotação carcerária e a promoção de um sistema judicial mais ágil e justo.

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[1] O plea bargaining é instituto de origem na common law e consiste em acordo entre o acusado e o Ministério Público, no qual o réu confessa o crime em troca de uma pena mais branda.