1. Introdução
O direito penal é considerado a ultima ratio do ordenamento jurídico brasileiro. Isso significa que deve ser o último recurso a ser utilizado para resolver controvérsias, dado que suas sanções são rigorosas e frequentemente envolvem a privação de liberdade ou restrição de direitos. Até mesmo medidas acordos propostos pelo Ministério Público têm impacto substancial sobre a liberdade e o patrimônio dos acusados.
Nesse contexto, o legislador optou por vedar a punição de atos preparatórios, pois são condutas preliminares, realizadas com a intenção de viabilizar a execução de um crime, mas que, por si só, não caracterizam o início da execução do delito. Como veremos, os atos preparatórios antecedem a execução do crime, permitindo ao agente desistir de sua ação ou ser impedido de cometê-la por circunstâncias alheias à sua vontade (tentativa).
Este texto tem como objetivo esclarecer o conceito de atos preparatórios, abordando a possibilidade de puni-los. Usualmente, podem ser confundidos com tentativa de consumar o crime. Por isso, a tentativa também será é abordada.
2. Conceito, tipos e lógica dos Atos Preparatórios
Os atos preparatórios antecedem o início da execução do crime. São condutas que visam reunir os meios necessários para a prática do delito. Eles fazem parte do caminho do crime, ou iter criminis, que é o caminho para a realização do crime. Segundo Nucci [2024], “é a fase de exteriorização da ideia do crime, através de atos que começam a materializar a perseguição do alvo idealizado, configurando uma verdadeira ponte entre a fase interna e a de execução”.
Em outras palavras, esses atos iniciais, que fazem parte de uma sequência de ações, podem culminar na consumação do tipo penal, mas, devido à sua distância dessa realização, não podem ser classificados como tentativa. Isso se deve ao fato de que, isoladamente, não são considerados perigo concreto ou lesão ao bem jurídico protegido.
Como exemplo, meramente comprar uma corda, com o objetivo de amarrar alguém, (privar essa pessoa de sua liberdade de locomoção – art. 148 do Código Penal) não constitui crime. Ao realizar tal compra, o agente ainda não aviltou contra a liberdade de ninguém. Isso poderá ocorrer depois, caso ele opte por iniciar sua empreitada criminosa.
Outro exemplo, citado por Nelson Hungria, envolve a situação em que: “Tício, tendo recebido uma bofetada de Caio, corre a um armeiro, adquire um revólver, carrega-o com seis balas e volta, ato seguido, á procura de seu adversário, que, entretanto, por cautela ou casualmente, já não se encontra no local da contenda; Tício, porém, não desistindo de encontrar Caio, vai postar- se, dissimulado, atrás de uma moita, junto ao caminho onde ele habitualmente passa, e ali espera em vão pelo seu inimigo, que, desconfiado, tomou direção diversa. Não se pode conceber uma série de atos mais inequivocadamente reveladores da intenção de matar, embora todos eles sejam meramente preparatórios”. Registra-se, por fim, que se Tício adquiriu a arma ilegalmente, o ato preparatório será punível apenas em relação ao crime de porte ilegal de arma de fogo (artigo 14 do Estatuto do Desarmamento), mas não ao de homicídio (art. 121 do Código Penal). Assim, temos que um ato preparatório somente é punível, via de regra, quando, por si só, constitui crime.
Outro exemplo de ato preparatório punível é o crime de Petrechos para Falsificação (Art. 291, Código Penal) – “Fabricar, adquirir, fornecer, a título oneroso ou gratuito, possuir ou guardar maquinismo, aparelho, instrumento ou qualquer objeto especialmente destinado à falsificação de moeda”. Esse crime está no capítulo do Carta Penal destinada a proteger a fé pública. Repare que, ao confeccionar uma máquina capaz de falsificar moeda, é possível que eu nunca a utilize e, portanto, não libere moedas falsas para circularem no mercado. Entretanto, como o texto penal considera que essa mera conduta de “Fabricar, adquirir, fornecer, possuir ou guardar” avilta contra a fé pública, torna-se crime.
Cumpre adicionar esse tipo de crime (ao qual se amoldam portar arma de fogo, quanto o de Petrechos de falsificação supracitados), é chamado “de mera conduta”, pois se consumam com a simples prática da ação ou omissão prevista no tipo penal, sem a necessidade de um resultado naturalístico. Segundo Mirabete e Renato Fabbrini [2009], “há uma ofensa (de dano ou perigo) presumida pela lei diante da prática da conduta”. Portanto, o legislador visa punir a conduta em si, independentemente de qualquer alteração no mundo exterior.
Pois bem! A distinção entre atos preparatórios e atos executórios está prevista no Código Penal, por exemplo, no artigo 14, II, ao estabelecer a tentativa do crime somente quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Isso significa que atos anteriores à execução, como decidir cometer o crime e preparar a execução, não são puníveis.
O ordenamento penal adere à teoria objetiva, baseada no perigo efetivo que o bem jurídico corre. Assim, o rompimento entre atos preparatórios e executórios se identificaria com o momento no qual o bem jurídico passa a sofrer perigo concreto de lesão.
Quanto ao limite entre os atos preparatórios e executórios, há diversas ramificações da teoria objetiva:
a) teoria objetivo-formal – que ato executivo “constitui uma parte do fato incriminado pela lei” (VON LISZT, BIRKMEYER), ou, nas palavras de BELING, “fazem parte do núcleo do tipo” (verbo).
Também inclui a teoria da hostilidade ao bem jurídico, sustentando ser ato executório aquele que retira o bem jurídico do “estado de paz”. Seriam executórios os atos unívocos a atingir o resultado típico.
b) teoria objetivo-material – os atos executórios compõem o núcleo do tipo, bem como tornam objetiva a hostilidade ao bem jurídico. É adotada pelo código penal português, em seu artigo 22:
“2 – São actos de execução:
a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou
c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.”
c) teoria objetivo-individual – os atos executórios dão início à ação típica, atacando o bem jurídico, mas podem ser os praticados imediatamente antes, desde que se tenha prova do plano concreto do autor.
A teoria objetivo-formal predomina no Brasil, mas as duas últimas vêm crescendo na prática dos tribunais. Segundo Nucci [2024], “com o aumento da criminalidade, têm servido melhor à análise dos casos concretos, garantindo punição a quem está em vias de atacar o bem jurídico, sendo desnecessário aguardar que tal se realize, desde que se tenha prova efetiva disso”.
Por fim, ressalta-se que o debate desses requisitos é devido, principalmente, à necessidade de estabelecer-se, em algum momento do iter criminis, a relação de nexo de causalidade entre a conduta do agente e a lesão ao bem jurídico, para que o fato se torne típico e, portanto, passível de sanção penal:
Art. 13 – O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.
Em conclusão, o debate sobre os requisitos para a tipificação de atos como preparatórios ou executórios visa estabelecer um nexo de causalidade entre a conduta do agente e a lesão ao bem jurídico, para que o fato seja considerado típico e passível de sanção penal, conforme disposto no Art. 13 do Código Penal. Assim, para que isso seja demonstrado da melhor forma durante uma investigação ou ação penal, convém ao acusado sempre consultar um advogado, para que ele possa expor a incidência da teoria que melhor se amolda ao caso, bem como oferecer perspectiva, ao cliente, da aplicação de tal entendimento em juízo.