28
Maio
2025

Suspensão do CAR e os desdobramentos da ADPF 743 – parte 1

Desde sua criação pela Lei nº 12.651/2012, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) consolidou-se como instrumento essencial de regularização ambiental, sendo obrigatório para todos os proprietários de áreas rurais.

Esses proprietários devem, portanto, registrar no CAR as áreas de preservação permanente, reserva legal e demais vegetações nativas de seus imóveis.

O resultado dessa normativa foi justamente a intensificação – por vezes, exacerbada, como veremos – do monitoramento geoespacial das florestas brasileiras. Isso acarretou a exigência, pelos órgãos ambientais, fundos de investimento, bancos, que concedem a crédito rural, seguros, programas de recuperação de florestas, a passarem a utilizar o CAR como requisito para desenvolver suas atividades junto aos respectivos proprietários rurais.

Afinal, quais entidades privadas renomadas se arriscariam a desenvolver projetos de longa data, apoiar investimentos agrários, conceder crédito a empreendimentos que têm alto risco de serem autuados? Situação semelhante ocorre com os órgãos públicos, pois, uma vez ausente a regularidade junto ao CAR, torna-se dificultoso fiscalizar as propriedades rurais e algumas lisenças têm como requisito o cadastro no CAR.

É nesse contexto que um pedido polêmico, realizado pelos partidos políticos Rede Sustentabilidade e PSOL, na audiência realizada em 03/12/2024, por ocasião da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 743, merece análise: “que o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que faz a gestão dos sistemas PRODES/DETER, com imagens em tempo real, que identificam a ilicitude de desmatamentos em tempo real, possuindo a gestão do CAR, com a identificação das propriedades em que a ilicitude foi praticada”, possa realizar a imediata suspensão dos cadastros

Essa ADPF visa à declaração de um “estado de coisas inconstitucional” – semelhantemente ao realizado na ADPF 347/2023, em relação ao sistema carcerário brasileiro – para que o Judiciário provoque a implantação de medidas eficazes de combate ao desmatamento e às queimadas pelos órgãos administrativos. Trata-se de um controle constitucional e jurisdicional da atuação do poder executivo, para que aquele imponha a tomada de atitudes pelos órgãos executivos, que devem assegurar à sociedade brasileira o direito a um meio ambiente equilibrado (artigo 225 da Constituição Federal)

A sanção de suspensão supramencionada, sem prévio procedimento administrativo, mesmo para produtores que tenham celebrado Termos de Ajustamento de Conduta ou realizado compensações ambientais, suscita controvérsias importantes. Por isso, diversas entidades, autarquias e amicus curiae se manifestaram no processo pela ilegalidade da medida, por cinco motivos principais:

1 – O pedido de bloqueio automático afronta o princípio do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV), pilares de qualquer processo sancionador;

2 – A Lei n° 12.651/2012, em seus artigos 44 a 49 garante apenas natureza declaratória e registral ao CAR, de forma que uma repentina instituição de sanção – por meio do poder judiciário – irá gerar insegurança jurídica e comprometer a situação de milhares de produtores, inclusive os que atuam em conformidade com a legislação ambiental;

3 – A Lei n° 9.605/98, em seu artigo 72, prevê as sanções administrativas possíveis a agentes que infrinjam a legislação ambiental, sendo que a suspensão do CAR não se enquadraria em nenhuma delas, ou seja, estaria ausente a permissão legal para que os agentes públicos aplicassem a suspensão.

4 – Falta confiabilidade aos sistemas PRODES e DETER, operados pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), que são basicamente mecanismos de pesquisa de possíveis desmatamentos e queimadas realizados por algoritmos computadorizados. Segundo os que se insurgem contra a sua utilização para aplicar a suspensão, os alertas emitidos por esses sistemas podem gerar falsos positivos e demandam verificação in loco.

O Governador do Estado de Goiás, Ronaldo Caiado, por exemplo, alegou que “a maioria desses alertas, quando se faz a vistoria in loco, não condiz em nada” com a realidade das propriedades.

Assim, impõe-se questionar: além de realizar o bloqueio PRELIMINAR (sem direito ao contraditório exigido pela constituição), seria sóbrio baseá-los numa projeção computadorizada com alta probabilidade de ser um “alarme falso”?

5 – CAR tornou-se condição para obtenção de crédito rural e acesso a políticas públicas ambientais (títulos verdes, PSA, créditos de carbono, programas de recuperação florestal etc.). Por isso, a suspensão sumária do CAR obstaria o exercício de diversos (possíveis) direitos.
A título de exemplo, desde 2023 o Banco Central exige CAR ativo para liberação de crédito rural, de modo que o bloqueio automático afetaria o mercado de crédito agrário;

Por fim, o CAR integra programas como o Programa de Regularização Ambiental (PRA) do Código Florestal, de modo que sua suspensão obstaria o acesso a recursos de compensação (PSA) e comprometeria investimentos em restauração.

Em razão de todas essas controvérsias, o Ministro Relator Flávio Dino não a deferiu. Ao invés disso, determinou a manifestação da União acerca da matéria e muitos outros agentes processuais também se manifestaram.

Na segunda parte deste conteúdo, abordaremos os desdobramentos penais e os riscos jurídicos associados à suspensão automática do CAR.