Todo homem nasce inocente. Isso significa que o estado natural das pessoas é a inocência. Para que haja alteração da classificação de um indivíduo de culpado para inocente, o Estado, o mesmo que define o que é crime, deve mostrar também a culpa, não confundir com culpabilidade, em um processo judicial sob o manto das garantias constitucionais.
Nessa ótica, um indivíduo somente poderá ser responsabilizado por um crime e consequentemente receber pena de prisão, se essa for a respectiva sanção penal, caso haja sentença penal condenatória transitada em julgado. É este entendimento constitucional que causou tanta controvérsia recentemente com as reviravoltas políticas.
Todavia, ainda que a prisão proveniente de sentença penal condenatória possua característica definitiva, ela não é a única prevista em nosso ordenamento jurídico. Há prisões civis dos devedores de alimentos, prisões administrativas militares, do estrangeiro em vias de extradição e, por fim, as prisões processuais, constituídas nas ocasiões de flagrantes, cautelares e preventivas.
Ainda que, como dito no início, exista de forma sólida no ordenamento jurídico o princípio da presunção de inocência, essas outras modalidades de prisão não caracterizam, em absoluto, afronta ao dispositivo constitucional. Inclusive, este entendimento foi sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça lá pelos idos de 1990[1].
Recentemente, em virtude das alterações realizadas pela Lei 13.964/2019, conhecida como Pacote Anticrime, houve uma mudança substancial no que diz respeito à prisão preventiva. A primeira delas é a retirada do poder que antigamente o juiz tinha de decretá-la de ofício[2], a segunda, com a alteração, a redação do artigo 312 do Código de Processo Penal passou a vigorar da seguinte forma:
“A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.”
A novidade consta a parte final do dispositivo “perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. Há quem defenda que não houve uma grande alteração na medida em que a parte final seria uma norma de fechamento que convalida as mencionadas no início: ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal, entre outras[3].
A questão central é na definição do que seria a ordem pública que seria, em tese, posta em perigo pelo estado de liberdade do imputado. O Legislador optou por não esmiuçar essa questão, deixando a liberdade de convencimento para o julgador.
Para tanto, na norma seguinte, artigo 313, § 2º do Código de Processo Penal, veda a possibilidade de a prisão preventiva ser medida adotada pelo magistrado como meios de executar antecipadamente a pena. Decisão completamente em desalinho com o devido processo legal e os princípios do Estado Democrático, ainda que esta argumentação tenha sido usada em plenário pelo Excelentíssimo Senhor Ministro Luis Roberto Barroso.
Por fim, no artigo 315 do mesmo diploma legal, há expresso entendimento de que a ordem que determinar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada. Motivar significa “fornecer as razões lógicas que levam a determinada decisão”. Fundamentar possui o significado de “apontar nos autos para sustentar certa decisão”. Ambos, por óbvio, respaldados no ordenamento jurídico[4].
Nahla Ibrahim Barbosa
[1] Súmula 09 do Superior Tribunal de Justiça: “A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência.”
[2] Artigo 311 do Código de Processo Penal: “Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.”
[3] DEZEM, Guilherme Madeira. MARTINS, Flavio – Podcast Saindo da Caverna – Episódio 2 – Prisão Preventiva – Spotify, 19.02.2020. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/7cZlLAYxBmpR0oSxpiANKb?si=53tI0L26Roe6N1nN0FFFhA Acesso em 07.07.2020
NUCCI, Guilherme de Souza – Podcast: Conversando com o Nucci – Prisão Preventiva Parte 1- Spotify, 23.06.2020. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/6UyQNsPCw7I53etob1Cb6p?si=2o3rnHPwRHmJgrLssr2DyA Acesso em: 07.07.2020
[4] Nucci, Guilherme de Souza. Pacote Anticrime comentado: Lei 13.964, de 24.12.2019 – 1 ed. [2. Reimpr.] – rio de Janeiro: Forense, 2020.