10
nov
2025

A vítima de violência doméstica pode recorrer contra a decisão que revogou medidas protetivas de urgência?

Por Liz Estudino

A violência doméstica e familiar contra a mulher é um fenômeno complexo e persistente, que ultrapassa a dimensão individual e revela uma questão estrutural da sociedade brasileira. A Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, representou um marco civilizatório ao reconhecer a necessidade de mecanismos específicos para garantir a integridade física, psicológica, patrimonial e moral da mulher em situação de violência.

Entre os instrumentos criados pela legislação destacam-se as medidas protetivas de urgência, previstas nos artigos 22 a 24 da Lei Maria da Penha. Elas possuem natureza cautelar e preventiva e têm como finalidade evitar a repetição da violência, afastar o agressor e assegurar a tranquilidade e a segurança da vítima. O juiz pode determinar o afastamento do agressor do lar, a proibição de aproximação ou contato, a suspensão da posse de armas de fogo e outras providências adequadas ao caso concreto.

O pedido pode ser feito pela própria vítima, por seu representante legal, pela autoridade policial ou pelo Ministério Público, e deve ser apreciado pelo juiz no prazo máximo de 48 horas, conforme determina o artigo 19 da Lei Maria da Penha. Essa rapidez é essencial, pois o risco à mulher muitas vezes é iminente.

Por outro lado, a própria lei prevê que tais medidas não são permanentes. Elas podem ser revistas, substituídas ou revogadas sempre que o juiz entender que cessou o perigo que as motivou. A revogação costuma ocorrer a pedido da defesa, do Ministério Público ou até mesmo de ofício, quando o magistrado avalia que não há mais situação de vulnerabilidade. No entanto, essa decisão não é meramente técnica: envolve avaliar a segurança da vítima e os impactos práticos de um possível reaproximar do agressor.

Na prática, há situações em que a revogação é fundamentada em reconciliações aparentes, acordos informais ou declarações de que o conflito foi resolvido. Contudo, a experiência mostra que muitas dessas reconciliações se dão em contextos de medo, dependência emocional ou econômica, e que a revogação precipitada das medidas pode expor a mulher a novos episódios de violência.

É nesse contexto que surge a questão central: pode a vítima recorrer da decisão que revogou medidas protetivas?

O Código de Processo Penal, em seu artigo 577, afirma que o direito de recorrer cabe às partes, isto é, ao Ministério Público, ao acusado e ao seu defensor. Tradicionalmente, portanto, a vítima não é reconhecida como parte no processo penal. No entanto, essa visão tem sido superada pela doutrina e pela jurisprudência contemporâneas, especialmente em matéria de violência doméstica, em que o foco da tutela é justamente a proteção da mulher.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (artigo 1º, inciso III) e impôs ao Estado o dever de coibir a violência no âmbito das relações familiares (artigo 226, parágrafo 8º). Somado a isso, o Brasil é signatário de tratados internacionais, como a Convenção de Belém do Pará, que obriga os Estados a adotar medidas eficazes para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. Esses instrumentos reforçam a interpretação segundo a qual a vítima deve ter voz ativa no processo e acesso à justiça para questionar decisões que afetem sua segurança.

Com base nessa evolução, os tribunais superiores vêm reconhecendo, de forma cada vez mais firme, a legitimidade da mulher para impugnar decisões que revogam ou modificam medidas protetivas. A jurisprudência atual tem enfatizado que, sendo a vítima a pessoa diretamente interessada na manutenção da medida, negar-lhe o direito de recorrer violaria os princípios do contraditório, da ampla defesa e da tutela efetiva dos direitos fundamentais.

Em alguns julgados, os tribunais estaduais, como o Tribunal de Justiça de São Paulo, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, já vêm admitindo o manejo de recursos diretos pela vítima ou, ao menos, garantindo-lhe o direito de ser intimada da decisão e de provocar o Ministério Público para interposição do recurso cabível. Essa tendência reflete um avanço na compreensão de que o processo penal deve servir não apenas à punição do agressor, mas também à proteção integral da pessoa ofendida.

Na prática, a vítima pode buscar a reversão da revogação por meio de pedido de reconsideração, recurso de agravo ou manifestação ao Ministério Público para que este adote as medidas processuais adequadas. O importante é que haja comunicação prévia e efetiva da decisão à vítima, o que lhe permite exercer o direito de defesa de sua própria integridade.

Do ponto de vista teórico, essa ampliação da legitimidade recursal da mulher é coerente com o movimento contemporâneo da vitimologia e com o modelo de justiça centrado nos direitos humanos. Trata-se de abandonar uma visão estritamente formal do processo penal, que via a vítima apenas como testemunha, e reconhecer sua posição como sujeito de direitos. Essa mudança de paradigma é especialmente relevante em contextos de violência doméstica, nos quais o risco de revitimização é elevado e a ausência de proteção judicial pode ter consequências irreversíveis.

Negar à mulher o direito de recorrer de uma decisão que revoga medidas protetivas seria, em última análise, negar-lhe o próprio acesso à justiça. É preciso compreender que a proteção conferida pela Lei Maria da Penha não é apenas uma medida processual, mas uma garantia existencial. Sua revogação deve ocorrer apenas quando houver elementos concretos e objetivos de que o risco cessou, jamais com base em presunções, declarações isoladas ou reconciliações frágeis.

Portanto, à luz da Constituição Federal, da Lei Maria da Penha e da jurisprudência mais recente, é possível afirmar que a vítima de violência doméstica pode, sim, recorrer da decisão que revoga medidas protetivas de urgência. A efetividade da lei depende justamente de assegurar à mulher o direito de participar ativamente das decisões que dizem respeito à sua segurança e à sua vida.

Mais do que uma questão processual, trata-se de uma afirmação de cidadania. Garantir o direito de recorrer é garantir voz à vítima, reforçar a credibilidade do sistema de justiça e reafirmar o compromisso do Estado brasileiro com a dignidade e a proteção das mulheres. O acesso à informação jurídica é um instrumento essencial para transformar a realidade da violência de gênero, e o conhecimento dos próprios direitos é o primeiro passo para romper o ciclo de silenciamento e vulnerabilidade.