18
out
2022

As peculiaridades do acordo de não persecução penal sob a perspectiva dos crimes contra a ordem tributária

Por Leonardo Calegari 

A Lei nº 13.964/2019 instituiu no ordenamento jurídico brasileiro um novo mecanismo de justiça criminal negocial, denominado de acordo de não persecução penal (ANPP).

O ANPP, em síntese, é instrumentalizado por meio de um negócio jurídico entre acusação e defesa, em que o investigado renuncia ao exercício de certos direitos fundamentais em troca de benefícios relacionados à própria sanção — em tese, menos gravosa — pelo cometimento de um crime, tudo isso sem a necessidade de um processo e uma sentença condenatória definitiva.

Em geral, os contribuintes inadimplentes que eventualmente forem dados como incursos nos crimes tributários preenchem os requisitos objetivos para seu oferecimento.

Inevitavelmente, o ANPP, como todo acordo, pressupõe o cumprimento de certas condições que subordinam o efeito do negócio jurídico, no caso, a extinção da punibilidade, conforme art. 28-A, § 13º, do Código de Processo Penal.

Dentre as condições previstas no rol — exemplificativo — do art. 28-A do CPP, encontra-se o dever de reparar o dano gerado pela conduta delituosa, o que muitos sustentam ser uma cláusula indispensável para a formalização do acordo.

Tal condição, todavia, sob a perspectiva dos crimes praticados contra a ordem tributária, ensejou teses, reflexões e debates difíceis, mas muitas vezes inconclusivos.

A controvérsia reside no fato de as legislações tributárias já preverem a hipótese de extinção da punibilidade ao infrator que efetuar o pagamento integral dos débitos a qualquer tempo, além da suspensão da pretensão punitiva durante o parcelamento do tributo antes do oferecimento de denúncia. Vale dizer, não haveria, sob o aspecto prático, logicidade para a formalização do ANPP.

Adotando essa linha de raciocínio é que parte da doutrina e jurisprudência perfilha do entendimento — interpretação literal — de que as condições elencadas nos incisos do caput do art. 28-A devem ser impostas cumulativa e alternativamente, mas de modo algum integralmente.

O argumento principal é no sentido de que a inclusão da reparação de dano como exigência para homologação do acordo, em sede de crime tributário, é medida que não se amolda ao ordenamento jurídico, dadas as particularidades deste tipo de criminalidade e a natureza do prejuízo, propriamente fiscal.

 Já a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal[1], firmou o entendimento de que o mero fato de existir uma outra forma de extinção da punibilidade para o crime tributário (pagamento ou parcelamento) não exclui a possibilidade de celebração do ANPP. Nessa linha, sustenta que o art. 28-A do CPP não estabelece um valor máximo pré-determinado como requisito para o oferecimento do acordo, de modo que, ainda que expressivo, o valor do dano também não pode constituir fundamento único para obstar a realização do ANPP[2].

Outra posição é apresentada pelo Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público de São Paulo[3], no sentido de que é legítimo, ao menos, condicionar o ajuste do ANPP ao ressarcimento do valor principal do tributo, mas sem os acessórios. Nesse caso, a reparação do dano não abrangeria o valor cobrado sob a rubrica de multa sancionatória, o que ainda poderia ser buscado pela Fazenda Pública mediante a correspondente execução fiscal.

Assim, as peculiaridades do acordo de não persecução penal sob a perspectiva dos crimes contra a ordem tributária demandam uma análise sistêmica e coerente das legislações extrapenais, visando evitar a deturpação deste importante mecanismo alternativo de justiça criminal negocial.

 

[1] Cuida-se do órgão incumbido da coordenação, da integração e da revisão do exercício funcional dos membros do Ministério Público Federal na área criminal.

[2] Voto 2693/2022, Processo 1.00.000.010525/2022-11. Rel. Subprocurador-Geral da República Francisco de Assis Vieira Sanseverino, proferido na 850ª Sessão de 27/06/2022.

[3] Boletim CAOCrim edição 129. Disponível em: https://www.mpsp.mp.br/caocriminal. Acesso em: 03/10/2022.