21
Maio
2024

Breves contornos penais sobre estelionato e FIDC – parte 2

Dizemos fraude, a eterna inimiga do bom direito na modalidade estelionato. Cabe ao juiz, a um só tempo, ser severo com as fraudes e prudente com a violência verbal de quem alega fraude, seja autor ou réu. Certa vez ouvi alguém dizer que “sinto cheiro de fraude”, o que não quer dizer rigorosamente nada. É preciso sempre descer aos fatos; não basta gritar “fraude!” em primeiro lugar, e gritar mais alto. A fraude é um problema técnico-jurídico,”quando a boa-fé não está presente, a promessa perde o seu papel de constituir relevantes obrigações morais. Se a intenção do promitente em comprometer-se não é manter a promessa, mas obter lucro unilateral pela quebra da promessa, o conceito que descreve o ato é fraude”.

Muito se fala sobre os aspectos conhecidos dos crimes falimentares, com penas diminutas e com chance real de prescrição, dado o longo caminho da trincheira do processo falimentar. Aqui, na realidade, queremos chamar a atenção sobre a fraude pré-recuperação judicial, ou seja, aquele que detém ou mantém a posse de valores recebidos, momentos antes de requerer a proteção legal, ou stay period. Necessário saber também que a Recuperação Judicial é uma alternativa para que empresas com dificuldades financeiras possam, com auxílio do poder judiciário, retomar sua posição no mercado superando a crise. Quando a empresa ingressa com pedido de Recuperação Judicial, após a análise de cumprimento dos requisitos da lei, o Juiz defere o processamento da recuperação, ou seja, o processo começa a caminhar. Uma das consequências dessa decisão é o chamado stay period, período de suspensão das ações e execuções em face da empresa em recuperação judicial. Afinal, os créditos não sujeitos à recuperação judicial podem ser livremente executados durante todo o curso do processo, inclusive durante o stay period (LRE, art. 6º, §7º-A).

Assim, o que se tem percebido é o reiterado uso de recursos, mormente obtidos em operações comerciais, até regulares, de antecipações de crédito (FIDCS), mas que o devedor camufla a real intenção em pagar. Ou seja, obtém, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento

Em conduta preordenada e deliberadamente ciente de que não pagaria a obrigação pecuniária, recebe os valores para, no momento após demonstrar uma perda de força incrível e avocar o beneplácito, mas já com o caixa recheado dos valores cedidos. Agem dolosamente e inescrupulosamente para não pagarem, em nítida conduta dolosa. Às vezes diante da prática dos crimes de apropriação indébita (CP, art. 1683) e fraude contra credores (LRE, art. 1684), além da configuração das hipóteses legais as quais autorizam a destituição dos administradores da sociedade (LRE, art. 64, II e III5).

Acontece, todavia, que ao longo do tempo e das operações recentes de mercado, verificou-se que desde o início das tratativas o intuito da emissora e dos avalistas era de, em conluio, obter vantagem indevida em prejuízo do FDICs e diversos outros credores, induzindo-os a erro, ao criar uma falsa expectativa sobre a liquidação dos títulos de crédito negociados. Isso porque, em menos de 2 (dois) meses após a obtenção do crédito numa atitude sobremaneira açodada e velada, tanto a empresa emissora quanto os avalistas surpreendentemente ajuizaram, em conjunto, pedido de Recuperação Judicial.

Tal conduta, no entanto, é forte indicativo da utilização fraudulenta do processo de Recuperação Judicial direcionada à blindagem do patrimônio, sobretudo do sócio e fundador de grande parte das empresas.

A partir desse contexto, portanto, tem-se verificado que os grupos econômicos devedores, incorrem em verdadeira fraude, conhecida no ordenamento norte-americano como “bustout”, na qual o devedor intencionalmente ganha a confiança de seus credores por determinado período para obter vultosa quantia a crédito sem pagamento imediato. Após, em clara predisposição criminosa, ingressa com processo de recuperação para forçar a concessão de maiores prazos de pagamento, eventuais acordos para não pagar juros ou abatimento de valores.

Assim, agem os credores na figura do dolo específico do delito de estelionato, consistente na real e inexorável intenção de obterem vantagem indevida, para si ou para outrem, em prejuízo de terceiro, mediante a prática de conduta fraudulenta.