Por Julia Zanetti da Costa
A jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça vem delimitando, com precisão técnica cada vez maior, o enquadramento jurídico aplicável às chamadas pirâmides financeiras, afastando interpretações que pretendem relacionar essas condutas a crimes contra o mercado de capitais ou ao sistema financeiro nacional.
Segundo o entendimento consolidado pelo Tribunal, esquemas de pirâmide caracterizam-se pela absoluta dependência do ingresso contínuo de novos participantes, atraídos por promessas de ganhos elevados, porém sem qualquer atividade econômica real que dê lastro ao aporte de recursos. A dinâmica é essencialmente fraudulenta e sustenta-se apenas pela transferência de valores dos novos entrantes para aqueles posicionados no topo da estrutura.
Nesse contexto, o STJ tem afirmado que a figura típica que melhor representa essa conduta é aquela prevista no art. 2º, inciso IX, da lei 1.521/51, que trata dos crimes contra a economia popular. Esse entendimento foi reafirmado, por exemplo, no julgamento do conflito de competência 146.153, no qual se destacou a inexistência de qualquer atividade financeira legítima que pudesse atrair o enquadramento em crimes contra o mercado de capitais.
A Corte também afastou, em diferentes julgados, a tentativa de aproximar essas condutas da lei 6.385/76, voltada à repressão de crimes relacionados ao mercado de capitais. No habeas corpus 293.052, ficou esclarecido que a mera camuflagem do esquema sob a aparência de uma atividade comercial não é suficiente para caracterizar administração irregular de investimentos ou qualquer outra hipótese típica da legislação de mercado.
Outro aspecto relevante estabelecido pelo STJ refere-se à competência para processamento das ações penais. No conflito de competência 170.392, o Tribunal ressaltou que a participação de criptomoedas ou de elementos próprios de mercados emergentes não altera o enquadramento típico, tampouco atrai automaticamente a competência da Justiça Federal, salvo quando presentes elementos específicos que indiquem prejuízo direto a bens ou interesses da União, conforme dispõe a súmula 498 do STF.
Também se destaca a orientação jurisprudencial que veda a imputação simultânea de estelionato e crime contra a economia popular para uma mesma conduta de pirâmide financeira. O STJ tem reiterado que, enquanto o estelionato exige vítimas determinadas, o delito contra a economia popular pressupõe vítimas indeterminadas ou a coletividade, sendo inadequado o acúmulo das duas tipificações para um único fato.
Além disso, a necessidade de reconhecer a dimensão humana por trás da imputabilidade penal nos casos da pirâmide financeira vem ganhando relevância no debate doutrinário e jurisprudencial. Embora a punição seja indispensável para a proteção da econômica popular, o STJ tem sinalizado que a responsabilização deve observar os limites da culpabilidade individual, diferenciando quem efetivamente arquitetou o esquema de quem apenas aderiu por desconhecimento ou vulnerabilidade econômica.
Nessa visão humanizada, evidencia-se que a imputação penal deve levar em conta a real compreensão do agente sobre a natureza ilícita da estrutura. Diversos participantes ingressam como vítimas e não como coautores, movidos por expectativas legitimas de investimento e submetidos a técnicas convincentes, altamente sofisticadas. O reconhecimento dessa diferença é de extrema importância para deixar de ocorrer responsabilizações excessivas e para garantir que a aplicação da lei penal observe o princípio da individualização da pena.
Outro ponto destacado na jurisprudência recente refere-se ao elemento subjetivo do tipo. O STJ tem destacado que o crime do art. 2º, IX, da Lei 1.521/51 exige dolo específico de fraudar a economia popular, consistentes na intenção deliberada de criar um sistema insustentável sustentado pelo ingresso de novos membros. Dessa forma, meras falhas de gestão ou irregularidades contratuais não se confundem com a estrutura fraudulenta típica da pirâmide. A diferenciação entre modelos de negócio arriscados e esquemas fraudulentos é central para evitar criminalizações amplificadas de atividades econômicas legítimas, sobretudo em mercados digitais e inovadores.
Assim, o que se verifica é uma consolidação jurisprudencial que reforça a necessidade de rigor técnico na análise de esquemas de pirâmide financeira. Embora altamente lesivas e merecedoras de repressão penal, tais condutas não se enquadram como crimes contra o mercado de capitais. A jurisprudência do STJ reafirma a importância de evitar interpretações expansivas e assegurar a correta qualificação jurídica, garantindo segurança jurídica, precisão conceitual e coerência na aplicação das normas penais.