Por Maria Fernanda Nogueira Lanfredi
Previsto na Lei nº 13.431/2017, o Depoimento Especial é o procedimento de oitiva de crianças ou adolescentes, vítimas ou testemunhas de violência, perante autoridade policial ou judiciária.
Ou seja, em vez de serem ouvidos em uma sala de audiência tradicional, são entrevistados por um profissional especializado, em ambiente apropriado e acolhedor, que assegure sua privacidade.
Durante o depoimento, é resguardado à vítima o não contato, ainda que visual, com o suposto autor ou acusado, ou com qualquer outra pessoa que represente ameaça, coação ou constrangimento, garantindo à vítima ou testemunha a possibilidade de relatar livremente a situação vivenciada. Essa narrativa é transmitida, em tempo real, para a sala de audiência.
Após a livre narrativa, o juiz poderá consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos, que poderão formular perguntas complementares, posteriormente adaptadas pelo profissional responsável pela condução do depoimento.
O principal objetivo desse procedimento é proteger a criança ou o adolescente, evitando que a vítima reviva o trauma da violência ao ser inquirida.
A aplicação do disposto na lei é facultativa para vítimas e testemunhas de violência com idade entre 18 e 21 anos, o que torna possível a utilização do Depoimento Especial por vítimas maiores de idade, desde que incluídas nessa faixa etária (parágrafo único, art. 3º, Lei nº 13.431/2017).
Logo, no sentido literal da lei, vítimas ou testemunhas de violência com mais de 21 anos estariam excluídas da possibilidade de se beneficiar desse instrumento de proteção.
No entanto, ao longo dos últimos anos, consolidou-se uma corrente ideológica e jurisprudencial favorável à ampliação do uso do Depoimento Especial em casos que envolvem vítimas adultas, sobretudo nos crimes de natureza sexual.
A violência sexual e doméstica também causa danos e traumas permanentes em vítimas adultas, uma vez que elas, da mesma forma que crianças e adolescentes, estão sujeitas à chamada vitimização secundária, isto é, ao prestarem depoimento revivem mais uma vez o acontecido.
Assim, não é incoerente propor a extensão desse direito a todas as vítimas de violência sexual ou doméstica, independentemente da idade.
No âmbito internacional, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, assinada e ratificada pelo Estado brasileiro, estabelece em seu artigo 7º, alíneas f e g, o dever de assegurar procedimentos justos, eficazes e sensíveis às necessidades das mulheres em situação de violência. Tais dispositivos indicam que os Estados signatários, incluindo o Brasil, devem evitar qualquer forma de revitimização.
Soma-se a isso o item 51.c da Recomendação nº 33/2015 do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW) , órgão vinculado à Convenção da ONU sobre Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, que recomenda aos Estados que:
“Tomem medidas eficazes para proteger as mulheres contra todas as formas de vitimização secundária por parte de autoridades judiciais e outras encarregadas da aplicação da lei, e considerem a criação de unidades especializadas em igualdade de gênero no âmbito dos sistemas de aplicação da lei, na investigação policial e no processo penal.”
Dessa forma, observa-se que, no plano internacional, já se reconhece que o Estado brasileiro possui o dever de adotar mecanismos que assegurem a escuta qualificada e a proteção integral de mulheres vítimas de violência, inclusive adultas.
Além disso, a Lei nº 13.505/2017 alterou a Lei Maria da Penha para incluir, entre as diretrizes na inquirição da mulher, a prevenção à revitimização:
Art. 10-A, § 1º (…) III – não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada.
Portanto, não há impedimentos legais que inviabilizem a extensão do depoimento especial às mulheres maiores de 21 anos, de modo a materializar um instrumento extremamente necessário para garantir uma escuta mais humanizada, reduzindo ao máximo o sofrimento e o impacto emocional decorrente da revivência dos fatos.