Do dolo eventual e sua relevância para os crimes de trânsito
O dolo eventual se caracteriza quando o agente, embora não querendo causar diretamente o resultado, aceita (assente com) a possibilidade de sua ocorrência. Assim, o dolo eventual é contemplado por uma das possibilidades de dolo previstas na legislação penal:
“O Brasil adotou, no art. 18, I, do CP, a teoria da vontade (para que exista dolo é preciso a consciência e vontade de produzir o resultado – dolo direto) e a teoria do assentimento (existe dolo também quando o agente aceita o risco de produzir o resultado – dolo eventual).” (ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Manual de Direito Penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. P. 112-113)
Na variante dolosa eventual, a vontade de causar o resultado cede lugar ao assentimento do agente com o resultado, independentemente da vontade psíquica direta, refletida e expressa de causá-lo.
No âmbito dos crimes de trânsito, por conseguinte, a jurisprudência se manifesta expressamente pela necessidade de o referido assentimento extrapolar a mera desatenção ao dever de cuidado (previsto no artigo 28 do CTB). Esta inobservância, como mencionado anteriormente, pode ser apenas um dos elementos da culpa e, por isso, não resulta sempre em conduta dolosa eventual.
Para caracterização do assentimento do agente com o resultado naturalístico e antijurídico de seu delito, estes devem se manifestar sob comportamentos arriscados, que ignoram, geralmente, várias normas e comprometem flagrantemente a segurança viária. Nestas situações, torna-se menos dificultoso identificar que o agente não se importa com as consequências adversas.
Como representante deste entendimento cuidadoso na jurisprudência pátria, transcrevo o voto do Exmo. Ministro Relator Reynaldo Soares da Fonseca, no julgamento do AgRg no REsp 1418885/SC:
“(…) não se pode partir da premissa de que todo aquele que dirige com velocidade excessiva não se importa em causar a morte ou mesmo lesões em outras pessoas – dolo eventual. Ainda, o fato de o acusado não ter freado não implica a presunção dessa circunstância. O excesso de velocidade, assim identificado de forma isolada nos autos, configura a violação ao dever objetivo de cuidado previsto no Código de Trânsito Brasileiro, não dolo eventual. Desta forma, não veio aos autos prova suficiente para tornar mais forte a circunstância de o acusado ter assumido o risco de produzir o resultado. Ao contrário. O conjunto probatório é frágil e recomenda a desclassificação. Importante salientar, de forma derradeira, que a pronúncia do acusado, à luz do princípio in dubio pro societate, pressupõe que a prova reunida descortine, ao menos, dúvida acerca da existência de dolo eventual.”
(AgRg no REsp 1418885/SC, 5{a Turma, DJe 01/09/2015)
No caso acima, houve indeferimento por insuficiência de provas do assentimento. Entretanto, cabe refletir: como se dá este juízo de aferição, se não nos é possível adentrar a mente do autor quando da prática do delito?
Na falta de outros elementos indiciários de sua intenção no momento do delito, resta identificar o quão grave e flagrante se mostra a “culpa” (negligência, imprudência e/ou imperícia) do condutor nos atos preparatórios e durante a consumação do crime.
Ou seja, há uma margem de razoabilidade a ser considerada no exercício jurisdicional, a qual auxilia na aferição do assentimento, amparando-se no quão intransigente foi a conduta do agente.
Para tanto, deve-se considerar a previsibilidade dos resultados nas condições em que o condutor se encontrava ou, em condições aproximadas e consideradas comuns. Sobre este juízo de aferição, comenta Felix Fischer, Ministro do STJ:
“O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor, mas, isto sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que o resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo direto, mas que a aceitação se mostre, no plano do possível, provável.” (REsp 247263-MG, 5.ª T., 05.04.2001, m. v., DJ 20.08.2001, p. 515).
Munida desta noção de razoabilidade, a jurisprudência pátria visa à imputação de dolo eventual nos crimes de trânsito em que a conduta é flagrantemente transgressora do dever objetivo de cuidado no trânsito. São casos em que não há que se falar em culpa consciente, em virtude do pujante e evidente descolamento do autor do dever de cuidado objetivo. Condutas que sinalizem diversos atos negligentes e imprudentes tendem à configuração do dolo eventual:
“Tem sido posição adotada, atualmente, na jurisprudência pátria considerar a atuação do agente em determinados delitos cometidos no trânsito não mais como culpa consciente, e sim como dolo eventual. As inúmeras campanhas realizadas, demonstrando o risco da direção perigosa e manifestamente ousada, são suficientes para esclarecer os motoristas da vedação legal de certas condutas, tais como o racha, a direção em alta velocidade sob embriaguez, entre outras”
(Código penal comentado: estudo integrado com processo e execução penal: apresentação esquemática da matéria : jurisprudência atualizada / Guilherme de Souza Nucci. – 14. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2014)
Nos crimes de trânsito, portanto, o dolo eventual se identifica na medida do descaso do agente com a segurança e a vida daqueles em volta.
A título de exemplo, o Acórdão infracitado expõe a possibilidade de conhecimento e aferição, durante a instrução processual, de elementos cognitivos que apontem fortemente para o assentimento com o resultado naturalístico. Isto é, elementos do assentimento (estudamos sobre isto em teorias do dolo); modos de se descobrir que psicologicamente, o autor realmente não se importava com eventual resultado antijurídico.
Ou seja, tal exame cognitivo possibilita identificar melhor a negligência ou imprudência manifesta e patente do agente. Por meio dele, o estado psicológico do agente é desvendado e seu perfil de condutor é traçado durante a instrução.
O assentimento com o resultado, portanto, que configura o dolo eventual, se confirma com mais acurácia, quando da aferição da importância que o agente dá à segurança viária, corroborado de elementos cognitivos (confirmadores do assentimento e do descaso com a segurança no trânsito):
(…) 2. Conforme denúncia, os recorrentes são proprietários de empresas habilitadas para o transporte rodoviário de cargas em geral desde 1989, cujo caminhão colidiu com um ônibus da [nome censurado] e duas ambulâncias (…). Nos termos da inicial acusatória, os denunciados teriam agido com dolo eventual, evidenciado pelo excesso de carga no caminhão, superior a 13 (treze) toneladas; utilizando tacógrafo, que também funcionava como velocímetro do caminhão, sem certificação junto ao INMETRO e que apresentava defeito que impossibilitava ao motorista saber a velocidade instantânea que estava trafegando; bem como submissão dos motoristas da empresa a jornadas exaustivas. Ainda segundo a denúncia, os ora recorrentes, tendo ciência que o motorista da empresa iria depor nos autos no dia 23/08/2017, o ameaçaram determinando que o mesmo mentisse na condição de testemunha e omitisse as irregularidades por eles cometidas, com o objetivo de obterem favorecimento próprio e sob pena de perda de emprego. (…) 9. Agravo regimental não provido.
(AgRg no RHC 151183 / ES, 5.ª T., DJe 10/12/2021)
No caso acima, estão presentes tanto a materialidade necessária para atestar o assentimento com o resultado naturalístico (tráfego do caminhão em condições péssimas de manutenção), quanto o elemento cognitivo (descaso com a instrução e conhecimento da manutenção insuficiente).
Ambos os elementos apontam para a conduta dolosa eventual, pois cumulam uma quantidade tão expressiva de elementos que poderiam causar um resultado antijurídico, que se torna inconcebível argumentar que os agentes tinham alguma condição de evitar o resultado. Afinal, quem conseguiria lidar com um caminhão sobrecarregado, com velocímetro defeituoso sob intenso cansaço?
É mister mencionar: o caso em tela demonstra que o dolo eventual pode recair sobre sujeitos ausentes no momento de acidentes, especialmente nas hipóteses de terem contribuído de forma significativa para a realização do resultado, em razão de conduta manifestamente negligente, imprudente e imperita.
O caso do julgado é demonstrado como a negligência dos superiores da referida empresa teve seu caráter maléfico (dolus malus) mais claramente delineado por suas condutas reprováveis após a persecução penal, como se o descaso dos mantenedores dos veículos com os bens jurídicos e sujeitos envolvidos no acidente tivesse se confirmado durante a instrução do processo.
Desta feita, resta cristalino o amparo que o elemento cognitivo (assentimento) garante à condenação por dolo eventual: emana da identificação do caráter maléfico do assentimento- dolus malus, desmascarando o descaso dos envolvidos com a segurança viária. É um parâmetro difícil de se confirmar, porém, carrega poderosa relevância probatória.
Afinal, se os agentes se esforçam para omitir informações, por exemplo, sobre seu conhecimento das condições inadequadas do veículo ou da falta de realização de revisões periódicas nos veículos, resta identificada uma tendência em desvalorizar os bens jurídicos protegidos pelo dever objetivo de cautela a que são obrigados legalmente.
No caso em tela, portanto, os elementos factuais garantiram substância à reprovabilidade das condutas, porque se protraíram diversas condutas no tempo: num primeiro momento, consideradas culposas por comportamento negligente ou imperito dos condutores e mantenedores do veículo, mas que se confirmaram dolosas pela alta probabilidade de estarem indiferentes à apuração de catástrofe causada pelo tráfego do veículo impróprio para circulação.
Uma vez introduzida brevemente a atuação do entendimento jurisprudencial em casos de trânsito no Brasil, passaremos na semana que vem por um exame mais especializado dos elementos do dolo eventual à luz da doutrina alemã, que tanto tem a nos ensinar sobre esta variante do dolo.