A seguir, apresentamos julgados que tratam da não punibilidade dos atos preparatórios, ilustrando como o tema é abordado nas instâncias recursais. Cada julgado será comentado brevemente para que o leitor compreenda a perspectiva do Relator e sua importância para o desenvolvimento das discussões sobre o tema. Os textos estão grifados, para uma boa compreensão global, mas recomenda-se que sejam lidos na íntegra, especialmente o primeiro e o último.
Os dois primeiros julgados são verdadeiros contrastes. Retratam bem o cenário descrito por Guilherme de Souza Nucci anteriormente: de que as teorias objetivo-individual e objetivo material foram paulatinamente implementadas na jurisprudência de acordo com a necessidade de coibir a crescente de crimes.
Eis o primeiro acórdão, datado de 2009, com tecimento de severas críticas ao esgarçamento da punição da tentativa, com base nas teorias acima:
“Dessa forma, entende-se o início da execução como o ato humano que dá o primeiro passo para a realização do tipo e produz uma lesão ou risco de lesão a um bem jurídico. É bem verdade que, em função da crítica de um conceito puramente formal de tentativa, algumas outras construções foram desenvolvidas, sobressaindo-se, dentre elas, a teoria objetiva-individual, em que se considera o plano do autor, ou seja, o curso dos acontecimentos imaginado pelo autor, para assim afirmar que o ato deste indivíduo estava, segundo sua determinação subjetiva, tão próximo da própria ação típica, que deve ser tido como início da execução.
Essa teoria parece responder à ânsia de muitos doutrinadores em ver abrangida pela punição da tentativa condutas anteriores à descrição típica, efetuando a almejada antecipação da punibilidade (que encontra sua expressão também na criação de tipos penais de perigo, tão difundido pelo legislador penal moderno como resposta a uma sociedade caracterizada pelo sociólogo Ulrich Beck como sociedade de riscos). No entanto, como já se afirmou, a antecipação da punibilidade deve encontrar estreitos limites no próprio discurso penal, na garantia da legalidade estrita, o que não se revela quando se “subjetiviza um critério que na lei é objetivo” (cf. MUNOZ CONDE, Francisco e GARCIA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal, Parte Ge/erah Apelação Criminal n° 990.08.180140-0 – São Paulo – Voto 8482 – jntb 10 PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO Valência: Tirante Io Blanch, 1996, p. 435). Em verdade, tal definição peca por pretender inserir-se no prisma subjetivo do autor para revestir um ato do caráter de imediatidade em relação à execução de atos típicos, o que parece revelar uma distinção entre meros atos preparatórios e a tentativa lastreada no que se poderia denominar “desvalor da ação apriorístico”, já que se leva em conta o plano subjetivo, a intenção do agente ao praticar um ato, sem inserir tal análise na apuração da tipicidade ou de um efetivo perigo produzido pela conduta. Reflete tal posição um verdadeiro juízo de adivinhação, ao pretender divisar temporalmente um ato como “imediatamente anterior à conduta que se amolda ao verbo do tipo” (cf. JESUS, Damásio E. de, Código Penal Anotado. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 41) com lastro no plano subjetivo do sujeito, o quê, em certa medida, parece se aproximar das posições do direito canônico, dirigindo a reprovação para o ânimo do autor, e desconsiderando que, sem a criação efetiva de uma lesão ou risco de lesão ao bem jurídico, é plenamente possível a alteração do plano subjetivo do autor de forma que nem cause qualquer alteração na realidade. Assim, essa ânsia por um expansionismo penal desenfreado, como se o Direito Penal fosse a primeira e única resposta aos problemas do convívio em sociedade, não apenas soa falaciosa, porque não dota tal área do conhecimento jurídico de maior efetividade em sua aplicação, como também perigosa, pois acaba descurando dos mais básicos princípios-garantias que devem orientá-lo.”
[GRIFOS NOSSOS]
(BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Criminal nº 0004215-72.2007.8.26.0002. Relator: Sydnei de Oliveira Jr. 7ª Câmara de Direito Criminal. Comarca: São Paulo, 29 out. 2009).
No mesmo sentido, o excerto abaixo replica a posição mais tradicional, aplicada, desta vez, num julgado mais recente:
“Dessa forma, considerando que o Código Penal adotou a teoria objetiva, segundo a qual “o início da execução é, invariavelmente, constituído de atos que principiem a concretização do tipo penal” (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, 11ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p.185), em sendo constatado que o acusado não chegou a tal fase do iter criminis, não há que se falar em conduta criminosa, ainda que sob a forma tentada.” [GRIFOS NOSSOS]
(BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Criminal nº 1500683-90.2021.8.26.0530. Relator: Camargo Aranha Filho. 16ª Câmara de Direito Criminal. Comarca: Ribeirão Preto, 4 out. 2021).
O Julgado seguinte, de Relatoria da Juíza Daniela Teixeira, tem escopo interessante: definir um dos parâmetros universais para o início da consumação do delito de fraude à licitação. Trata-se, claramente, de um marco de rejeição da teoria objetivo-individual. Afinal, fixou-se que o crime de frustração do caráter competitivo da licitação (art. 337-F do Código Penal) deve, necessariamente, mesmo na modalidade tentada, incluir a “realização do procedimento licitatório”. Assim, mesmo que o julgador disponha de provas de que havia um plano concreto dos associados para a empreitada, não poderá puni-los, por não caracterizar ato de execução:
“Ementa: DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FRAUDE À LICITAÇÃO. NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DO
PROCEDIMENTO LICITATÓRIO PARA A CONFIGURAÇÃO DO TIPO PENAL. ATOS PREPARATÓRIOS. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE. RECURSOS PROVIDOS.
I. CASO EM EXAME
1. Agravos interpostos contra decisão que inadmitiu recursos especiais, no qual os recorrentes sustentam a ausência de tipicidade da conduta imputada referente ao crime de fraude à licitação, alegando que os atos supostamente ilícitos se deram antes da realização do certame licitatório, configurando apenas atos preparatórios.
II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO
2. A questão em discussão consiste em definir se a configuração do crime de fraude à licitação, tipificado no art. 90 da Lei nº 8.666/93, exige que o procedimento licitatório tenha sido efetivamente realizado, ou se atos preparatórios, como a combinação entre os participantes antes da realização do certame, são suficientes para caracterizar o delito.
III. RAZÕES DE DECIDIR
3. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça considera o crime de fraude à licitação como delito formal, cuja consumação prescinde de comprovação de prejuízo ou obtenção de vantagem, conforme estabelece a Súmula nº 645 do STJ.
4. No entanto, entende-se que, para a configuração do tipo penal, é imprescindível que haja a realização do procedimento licitatório, de forma que meros atos preparatórios, anteriores ao início da licitação, não são suficientes para caracterizar a infração penal.
5. Precedentes da Quinta e Sexta Turmas do STJ corroboram o entendimento de que a simples combinação entre licitantes, sem a formalização do procedimento licitatório, não configura o crime de fraude à licitação, uma vez que não se caracteriza a quebra do caráter competitivo do certame. IV. RECURSOS PROVIDOS.” [GRIFOS NOSSOS]
(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 990081801400. Relatora: Ministra Daniela Teixeira. Quinta Turma. Julgado em 3 dez. 2024. Publicado no DJEN em 26 dez. 2024).
“(…) O mero ajuste informal entre os réus não possui o condão de frustrar o caráter competitivo da licitação, regra que o tipo penal previsto no art. 90 da Lei 8.666/1993 visa a preservar. Tal ajuste caracteriza-se meramente como ato preparatório, na medida em que o elemento subjetivo do tipo, consistente no intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto do certame, somente ocorrerá com a formalização do contrato administrativo, momento em que consolidarão os direitos e deveres do licitante. (…)”
[GRIFOS NOSSOS]
(STJ – HC: 484690 SC 2018/0336820-0, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 30/05/2019, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 04/06/2019. Grifo Acrescido.)
Por fim, um julgado que concatena diversas teorias e alguns de seus representantes, para o leitor que busque uma leitura mais intrincada dos conceitos ora desenvolvidos. O julgado aborda a diferença entre conduta típica (ação ou omissão que está descrita no tipo penal) e crime (que é o ato típico, ilícito e culpável).
“A defesa insiste que JEFFERSON e Cauan não ultrapassaram o marco divisório entre os atos preparatórios e os atos executórios, afirmando que a conduta de instalar a escada e isolar o local com cones seriam meros atos preparatórios e que, de acordo com a teoria objetivo-formal, a execução do crime só teria início quando o verbo do tipo penal (subtrair) estivesse sendo realizado. Sem razão, contudo. Acerca do tema, leciona Damásio de Jesus que, de acordo com o critério formal, “só há começo de execução quando o sujeito inicia a realização da conduta descrita no núcleo do tipo, que é o verbo”, destacando, contudo, que “há casos em que, embora o autor ainda não tenha iniciado a realização de um comportamento que se adapte ao núcleo do tipo, não se pode deixar de reconhecer o início de atos executórios do crime e a existência da tentativa”. Explica o professor que “se se exige, para a existência da tentativa, que a conduta se amolde ao núcleo do tipo, não haveria tentativa de crime de mera conduta, como a violação de domicílio”, de modo que “em face disso, estamos hoje abandonando as teorias material e formal-objetiva e aceitando a objetiva-individual”, segundo a qual “é necessário distinguir-se ‘começo de execução do crime’ e ‘começo de execução da ação típica’”. Prossegue Damásio de Jesus, asseverando que “se o sujeito realiza atos que se amoldam ao núcleo do tipo, certamente está executando a ação típica e o crime. Mas, como começo de execução da conduta típica não é o mesmo que começo de execução do crime, o conceito deste último deve ser mais amplo. Por isso, o começo de execução do crime abrange os atos que, de acordo com o plano do sujeito, são imediatamente anteriores ao início de execução da conduta típica. Nosso CP, no art. 14, II, fala em início de execução do crime, não se referindo a início de execução da ação típica. Diante disso, é perfeitamente aceitável o entendimento de que também são atos executórios do crime aqueles imediatamente anteriores à conduta que se amolda ao verbo do tipo” (Direito Penal Parte Geral vol. 1, Ed. Saraiva, 37ª ed., 2020, p. 362/363).
Ainda sobre o tema, assevera Flávio Augusto Monteiro de Barros: “o critério objetivo formal tem o mérito de identificar o exato instante do perigo ao bem jurídico, tomando como referencial o núcleo do tipo. Ninguém nega atributo executório ao ato que inicia a realização do ‘núcleo do tipo’. Todavia, essa teoria peca pelo exagero de aguardar a execução da ação típica para só então atribuir ao ato o caráter executório. Em contrapartida, a teoria objetiva individual, que no Brasil encontra em José Henrique Pierangelli seu verdadeiro paladino, elimina a paciência da corrente anterior, enquadrando também como executórios os atos que, consoante o plano do agente, sejam imediatamente anteriores ao início da execução do núcleo do tipo. Essa teoria faz distinção entre o início da execução do crime e o início da execução da ação típica. Este coincide com o começo da realização do ‘núcleo do tipo’, ao passo que o início da execução do crime, ensina Pierangelli, ‘abarca aqueles atos que, conforme o plano do autor, são imediatamente anteriores ao começo da execução da ação típica’. Contenta-se, para a caracterização da tentativa, em que haja o início da execução do crime, uma vez que o nosso Código, no art. 14, II, não exige o início da execução da ação típica.” (Manual de Direito Penal volume 1 Parte Geral Completa, 2023, p. 272/273). De fato, a teoria objetiva-individual é a que melhor se amolda ao previsto no artigo 14, inciso II, do Código Penal. Prevê o referido dispositivo: “diz-se o crime tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstância alheias à vontade do agente”. Em outras palavras, a legislação pune a tentativa com o início da execução do crime e não da conduta típica. No caso dos autos, as condutas praticadas por JEFFERSON e Cauan, consubstanciadas em posicionar a escada no poste, colocar cones para isolar o local e vestir equipamentos de segurança, como capacetes, não podem ser entendidas como meros atos preparatórios. Tais condutas eram necessárias para satisfazer o verdadeiro intento de furtar a energia elétrica, caracterizando atos executórios. Adotar a teoria objetiva-formal levaria à conclusão de que nunca haveria tentativa de furto de energia elétrica. Quando o agente iniciasse a subtração da energia, já teria consumado o delito. [GRIFOS NOSSOS]
(BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Criminal nº 1520052-35.2023.8.26.0228. Relator: Pinheiro Franco. 5ª Câmara de Direito Criminal. Comarca: São Paulo, 17 out. 2024).
Conclusão
O presente texto abordou as teorias sobre a punição da tentativa de crime, analisando a diferença entre as abordagens objetivo-formal, objetivo-material, objetivo-individual e subjetivo-objetiva, com destaque para a prevalência da teoria objetivo-formal no ordenamento jurídico brasileiro e a adesão dos tribunais a diferentes teorias de acordo com a necessidade social e as especificidades de cada caso. Ademais, discutiu-se a zona cinzenta em que, por vezes, depara-se com os conceitos de tentativa, atos preparatórios e executórios.
Assim, diante das nuances das controvérsias envolvendo atos preparatórios, é fundamental contar com uma defesa técnica qualificada desde os primeiros momentos da investigação, que pode ser crucial para garantir que a fase de produção de provas seja proveitosa para resolução da controvérsia penal e garanta a aplicação da teoria cabível durante uma eventual ação penal.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 990081801400. Relatora: Ministra Daniela Teixeira. Quinta Turma. Julgado em 3 dez. 2024. Publicado no DJEN em 26 dez. 2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 484690 SC 2018/0336820-0. Relator: Ministro Ribeiro Dantas. Quinta Turma. Data de Julgamento: 30 maio 2019. Data de Publicação: DJe 04 jun. 2019.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Criminal nº 0004215-72.2007.8.26.0002. Relator: Sydnei de Oliveira Jr. 7ª Câmara de Direito Criminal. Comarca: São Paulo, 29 out. 2009.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Criminal nº 1500683-90.2021.8.26.0530. Relator: Camargo Aranha Filho. 16ª Câmara de Direito Criminal. Comarca: Ribeirão Preto, 4 out. 2021.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Criminal nº 1520052-35.2023.8.26.0228. Relator: Pinheiro Franco. 5ª Câmara de Direito Criminal. Comarca: São Paulo, 17 out. 2024.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. v. 5.
MIRABETE, Julio Fabrini; FABRINI, Renato N. Manual de Direito Penal: volume 1, parte geral (arts. 1° a 120 do CP). 25. ed. rev. e atual. até 11 de março de 2009. São Paulo: Atlas, 2009.
PORTUGAL. Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de março de 1995. Código Penal Português. Disponível em: https://diariodarepublica.pt/dr/legislacao-consolidada/decreto-lei/1995-34437675. Acesso em: 18 fev. 2025.