02
abr
2025

STJ reconhece a possibilidade de o Ministério Público propor ANPP em ação penal privada após inércia do querelante

Por João Vitor Moreira Michelin

Após a introdução do art. 28-A do Código de Processo Penal pela Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) passou a ser um dos principais institutos jurídicos possíveis ao Ministério Público para promover a justiça criminal.

O Acordo é geralmente oferecido antes do recebimento da Denúncia, dispensando a necessidade de prosseguimento da ação penal para ensejar a ressocialização do suposto autor. Para sua celebração, são necessárias a confissão formal e circunstanciada do autor, reparação do dano, renúncia aos bens, direitos ou instrumentos relacionados à prática ou resultado do crime, bem como prestação de serviços à comunidade, prestação pecuniária ou outra condição apta a promover a reeducação do acusado.

Apesar da expressão “poderá” que destacamos no caput, é mister salientar que o Ministério Público não dispõe da possibilidade de oferecer ou não o Acordo de Não Persecução Penal. Afinal, o princípio da objetividade prescreve que o Promotor de Justiça deve agir de acordo com o interesse público- diretamente extraído da comunhão das normas positivadas em nosso ordenamento. Por isso, caso um acusado se adeque aos requisitos para celebração do ANPP, não é equivocado dizer que o parquet tem a obrigação legal de oferecer o Acordo, sob pena de negligenciar a realização do interesse público.

Nessa toada, mediante cumprimento dos requisitos (abaixo) pelo acusado, alguns doutrinadores defendem a existência de um direito subjetivo à formulação de uma proposta justa de Acordo de Não Persecução Penal:

i) prática de infração penal sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a 4 anos;
ii) confissão formal e circunstanciada pelo investigado;
iii) necessidade e suficiência do acordo para a reprovação e prevenção do crime;
iv) ausência de reincidência e de antecedentes criminais específicos impeditivos
Ora, o legislador optou, mesmo durante uma ascensão do pensamento punitivista, à época da promulgação do pacote anticrime, por introduzir uma medida despenalizadora. É evidente que seu interesse era a desburocratização do direito penal, visando à efetividade, celeridade dos processos criminais. Também por isso, o interesse público tutelado pelo legislador e atrelado ao instituto do Acordo de Não Persecução Penal não pode ser negligenciado pelo órgão Ministerial.

Ocorre que, conforme observamos na redação do artigo 28-A, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, no caso que narraremos, levou bastante a sério a pretensão do legislador e buscou consumar sua função de fiscal da Lei, emanada do artigo 127 de nossa Constituição Federal.

Isso porque, embora o Ministério Público seja o titular das ações penais públicas, o Promotor designado ao processo aqui analisado (Recurso Especial nº 2.083.823/DF), julgado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, o Promotor de Justiça identificou uma suposta inércia do Querelante na ação penal privada de origem, que não propôs Acordo de Não Persecução Penal ao Querelado. Por isso, o membro ministerial propôs ele mesmo o Acordo, mesmo sendo uma ação de iniciativa do particular.

Diante dessa inovação processual, vislumbrando possível afronta a precedentes das Cortes Constitucionais e objetivando prosseguir com a persecução penal, entendendo estar exercendo seu direito de ação, o Querelante interpôs reclamação perante o Tribunal de Justiça, que a julgou improcedente, sustendando que “na qualidade de custos legis, é legítima e oportuna, porque atende à finalidade de pacificação social na perspectiva de um processo penal garantista”.

O STJ também julgou o recurso improcedente. Segundo o Ministro Relator Joel Ilan Paciornik, “o querelante não possui poder absoluto para recusar o ANPP, devendo sua negativa ser devidamente fundamentada, sob pena de abuso do direito de ação”. Ou seja, entendeu-se que a atuação ministerial não usurpa a titularidade da ação penal privada, mas ocorre de forma excepcional e fiscalizatória, conforme previsto no art. 45 do CPP.

De um lado, o Querelante argumentou pela disponibilidade da ação penal como pedra angular de sua propositura, não cabendo ao Ministério Público intervir na pretensão de acusar da vítima. De forma diversa, a Quinta Turma evocou a vontade do legislador para vencer os argumentos do Querelante: “com o inegável propósito de possibilitar soluções consensuais para crimes de menor gravidade, reduzindo o número de processos penais ao mesmo tempo em que propicia maior celeridade à justiça criminal”. Nessa toada, a função de custos legis do MP seria fator concretizador da vontade legislativa.

A posição, entretanto, não é pacificada. O próprio Querelante citou a APN n. 912/RJ, que tramitou no STJ, no qual o instituto de suspensão condicional do processo não foi oferecido quando do ajuizamento da queixa-crime, tampouco requerido pela Querelada, tendo o Ministério Público opinado pela preclusão. Não é precedente relacionado ao ANPP, mas caberia a analogia, porque a atuação do Ministério Público se direcionou no sentido de respeitar a disponibilidade e titularidade da ação penal privada e deixar o Querelante exercer seu direito de ação, reclamando a aplicação do poder punitivo do estado como melhor entender e reconhecendo a ausência de pedido de suspensão da parte Querelada.

No caso aqui tratado, entretanto, entendeu-se que a transmissão da legitimidade de promover persecução penal para o particular não é absoluta. O Querelado não pode atuar como quiser nessa função substitutiva, tratando-se de uma substituição processual condicionada pelos demais princípios positivados. Por isso, se os pedidos do Querelado não satisfazem o objetivo de despenalizar a justiça, o MP poderia intervir, sob os seguintes fundamentos:
a) O interesse público é subjacente à ação penal privada, de forma que o particular é um mero substituto processual;
b) Negar a possibilidade de formulação de ANPP em crimes de ação penal privada significaria conceder tratamento mais gravoso a acusados que se encontram em situações idênticas, violando a igualdade substancial;
c) O caráter restaurativo e desjudicializante da política criminal contemporânea
A partir desse raciocínio, as seguintes situações foram fixadas, nas quais a Turma entende ser lícita a atuação do parquet supletivamente ao patrono do querelado: “O Ministério Público possui legitimidade supletiva para propor o ANPP, nos casos em que a negativa do querelante for injustificada, abusiva ou desproporcional”. Ou seja, a ausência de previsão expressa não seria proibição, aplicando-se a analogia ampliativa, que conferiria o direito de firmar ANPP ao Querelado.

Quanto ao momento para o oferecimento do Acordo, em regra, seria anterior ao ajuizamento da queixa. Entretanto, como o acusado toma ciência da ausência de proposta de ANPP ao responder à acusação, permitir-se-ia a manifestação do Querelado sobre o cabimento do acordo.

Em conclusão, nesse cenário, os advogados, ao proporem ação penal privada, terão que se adaptar à possibilidade da aplicação do ANPP. O precedente também abre caminhos para, cada vez mais, questionar a liberdade de atuação do Querelante enquanto “substituto processual” do Estado.

Trata-se, igualmente, de uma oportunidade que terão os Querelados de formular pedido de celebração de ANPP, sendo beneficiados em casos estratégicos. Por isso, mesmo em fase de Inquérito Policial, o investigado deve consultar um advogado para analisar a melhor opção jurídica para o caso concreto em que está inserido.

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Referências Bibliográficas

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PACIORNIK, J.I.; MARINHO, V.R.; AVELAR, D.R.S. Proposta de ANPP pelo Ministério Público em ação penal privada. Consutor Jurídico – CONJUR (ISSN 1809-2829), 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-nov-16/proposta-de-anpp pelo-ministerio-publico-em-acao-penal-privada/. Acesso em: 25 mar. 2025.