04
ago
2025

Ação penal originária no Supremo Tribunal Federal – Conceito e controvérsias recentes

O chamado “foro por prerrogativa de função”, popularmente conhecido como “foro privilegiado”, é conferido a determinadas autoridades públicas, como deputados federais e senadores, com a justificativa de assegurar a independência do cargo, a segurança jurídica das instituições e o regular exercício das funções públicas.

A ação penal originária no Supremo Tribunal Federal, isto é, quando a ação penal tem início no Tribunal que, normalmente, desempenha o papel de último revisor em matérias constitucionais, decorre dessas prerrogativas de função. A própria Constituição Federal, em seu artigo 102, prescreve as situações nas quais o STF pode julgar ações penais originariamente, como nos casos de cometimento de crimes comuns pelo Presidente da República e por seus próprios Ministros, ou de crimes comuns e de responsabilidade por Ministros de Estado. Em outras palavras, se essas autoridades cometem crimes comuns durante o mandato, o processo criminal inicia-se já no Supremo, e não perante um juiz de primeiro grau.

Ultimamente, diversas ações penais originárias têm atraído holofotes para a Suprema Corte, como a emblemática Ação Penal n° 2668, que julga a possível prática dos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado, por Jair Bolsonaro e outros réus; além de todas as ações penais envolvendo os ocorridos do “oito de janeiro”, que têm sido julgados na Suprema Corte.

Ambos os julgamentos contêm idiossincrasias próprias, que merecem análise. A primeira, concernente a ambos os casos, trata do julgamento das ações originárias pelo Plenário do Supremo (conjunto de todos os onze Ministros), ou pelas Turmas (conjunto menor de ministros, cuja decisão pode ser revisada pelo plenário). Vejamos:

Originalmente, o Plenário era encarregado de processar e julgar as ações penais originárias. Foi assim, por exemplo, no caso do Mensalão. Contudo, a sobrecarga gerada por aquele processo levou o Tribunal a rever sua dinâmica interna. Em 2014, buscando dar maior celeridade aos julgamentos, o STF alterou seu Regimento Interno para delegar o julgamento de inquéritos e ações penais às Turmas. Tal alteração é possível devido ao artigo 96 da Constituição da República, que estabelece a competência dos tribunais para a elaboração de normas de organização interna sobre a atribuição e o funcionamento de seus órgãos jurisdicionais e administrativos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes.

Uma das críticas é de que as alterações dessa competência são repetitivas num curto espaço de tempo. Isso acarreta certa incerteza acerca da tramitação dos processos, porque o grupo de julgadores segue mudando e o enquadramento dos acusados, investigados e réus no foro de prerrogativa de função também sofre alterações.

A Ação Penal 937 foi um divisor de águas neste sentido. Decidiu-se que somente seriam julgados no STF os crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções do mandato. Essa restrição drástica do foro (que relegou diversos processos à apreciação da Justiça Federal, ao invés do STF) acabou, em 2020, motivando a Corte Máxima a voltar à tramitação das ações penais originárias no Plenário, entendendo que, com menos casos, o Pleno poderia reassumir essa atribuição.

Assim, de 2020 até 2023, todas as ações penais originárias voltaram a ser julgadas pelo conjunto completo de Ministros. Por um lado, poder-se-ia argumentar que isso trouxe isonomia de tratamento e decisões mais definitivas em casos de grande repercussão. Por outro, as decisões demoravam mais para serem proferidas e não garantiam o duplo grau de jurisdição – previsto no art. 8.2, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o qual assegura a toda pessoa acusada de delito o “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior” – e implícito na Constituição Federal, segundo alguns juristas. Afinal, quando o julgamento ocorre nas turmas, é possível recorrer ao Pleno do Supremo, mas quando o julgamento já ocorre no Pleno, apesar de ser realizado por um número vasto de julgadores muito qualificados, não há o tão consagrado duplo grau de jurisdição, pois não há órgão superior ao qual recorrer.

Entretanto, após a pauta de processos aumentar novamente, em decorrência de processos criminais como os atos de 8 de janeiro de 2023, em dezembro daquele ano, o STF alterou novamente seu Regimento para devolver às Turmas a maioria dos julgamentos das ações penais originárias. O julgamento de Bolsonaro também foi relegado a uma Turma, porque o artigo 5° do Regimento prevê o julgamento pelo Plenário de crimes comuns possivelmente praticados pelo Presidente da República, o Vice-Presidente da República, os Deputados e Senadores, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e o Procurador-Geral da República – com exceção do último, todos fazem parte da linha sucessória da Presidência da República – garantindo melhor estabilidade às decisões que afetem um cargo desta escol.

Quanto aos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, os crimes cometidos – que vão de associação criminosa e dano ao patrimônio público até abolição violenta do Estado de Direito – envolveram em sua grande maioria cidadãos comuns, sem cargo público. Em tese, esses indivíduos deveriam ser processados pela Justiça Federal de primeiro grau, já que não possuem prerrogativa de foro. Contudo, o STF decidiu pela permanência dos julgamentos na Corte, devido à “evidente conexão entre as condutas denunciadas e aquelas investigadas no âmbito mais abrangente dos procedimentos envolvendo investigados com prerrogativa de foro” (STF, AP 1427), atraindo pelo critério da conexão (artigo 76 do Código de Processo Penal) tanto os acusados com foro quanto aqueles sem foro envoltos na mesma trama. A complexidade dos casos também serviu de motivação para a atração da competência, prevenindo que a Justiça Federal decidisse de forma muito divergente do STF.

Na prática, isso resultou em um volume inédito de processos penais no Tribunal. Segundo dados oficiais, mais de 1,3 mil ações penais relativas a esses atos já foram abertas no STF. Essa sobrecarga dificulta, inclusive, o julgamento célere e pormenorizado de cada caso pelos Gabinetes do Tribunal, que precisaram arcar com uma ampla gama de ações penais de uma só vez. No mesmo sentido, há que se considerar a sobrecarga da Procuradoria Geral da República, responsável por exercer o dever-poder de titularidade da ação penal em todos esses casos, que também contrai as dificuldades de acusar tantos réus de uma só vez, com a celeridade que demandam os processos nos quais há réus presos.

Diante desse cenário, é possível afirmar que a atuação advocatícia em ações penais originárias perante o Supremo Tribunal Federal exige uma abordagem diferenciada e altamente estratégica. O defensor deve estar atento não apenas aos aspectos jurídicos do caso, mas também à conjuntura política e institucional que permeia a atuação da Suprema Corte. A atual sobrecarga das Turmas e da PGR impõe desafios adicionais à efetivação do contraditório e à análise individualizada de cada processo. Por isso, uma defesa técnica bem construída, personalizada e ancorada em argumentos jurídicos robustos — que compreenda a dinâmica interna do STF, seus entendimentos recentes e os fluxos decisórios específicos — torna-se fundamental para assegurar ao réu um julgamento justo, equilibrado e aderente às garantias constitucionais do devido processo legal.