27
out
2025

Feminicídio e identidade de gênero: o lugar das mulheres trans na proteção penal

Por Júlia Gonçalves Fraga

A Lei nº 13.104/2015 trouxe um marco importante ao incluir no Código Penal a qualificadora do feminicídio, definindo-o como homicídio cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Essa alteração legislativa buscou enfrentar uma realidade alarmante: a violência letal contra mulheres, especialmente em contextos de violência doméstica e discriminação de gênero. Contudo, a redação da norma levanta uma questão crucial: quem é considerada mulher para fins penais?

Ao optar pelo termo “sexo feminino”, o legislador deixou espaço para interpretações restritivas que podem excluir mulheres trans da proteção integral prevista pela lei. Essa lacuna é preocupante, sobretudo porque o Brasil figura entre os países que mais matam pessoas trans no mundo, segundo dados da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Esses homicídios, em grande parte, estão diretamente relacionados à identidade de gênero e à vulnerabilidade social dessas mulheres, revelando que a violência de gênero não se limita ao sexo biológico, mas decorre de relações de poder e preconceito.

Quando uma mulher trans é assassinada por seu parceiro ou em razão de sua identidade feminina, a motivação é claramente de gênero. Negar a aplicação da qualificadora nesses casos significa ignorar a essência da lei: proteger vidas contra a violência baseada na condição de ser mulher. A interpretação restritiva não apenas perpetua a exclusão, mas também contraria princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e a igualdade material.

Algumas decisões judiciais já reconhecem o feminicídio em casos envolvendo mulheres trans, onde o Ministério Público denunciou o homicídio como feminicídio e o Judiciário acolheu a qualificadora. Esse precedente representa um avanço, mas ainda é exceção. A falta de uniformidade na aplicação da lei demonstra a urgência de consolidar uma hermenêutica que considere identidade de gênero como critério para caracterização do feminicídio.

A Lei Maria da Penha já sinaliza esse caminho ao admitir medidas protetivas para mulheres trans, reconhecendo que a violência de gênero decorre de estruturas sociais e não apenas de características biológicas.

Essa lógica deve ser estendida ao feminicídio, sob pena de manter uma parcela vulnerável da população à margem da proteção penal.

Em síntese, o feminicídio deve ser compreendido como violência contra mulheres em razão de sua identidade de gênero, e não apenas do sexo biológico. A exclusão das mulheres trans desse conceito reforça a marginalização e contraria os fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Cabe ao Direito Penal, enquanto instrumento de tutela de bens jurídicos fundamentais, adaptar-se à realidade plural das identidades femininas, garantindo que nenhuma mulher seja deixada sem proteção.