23
out
2025

Medidas cautelares atípicas e os limites do poder judicial no processo penal

Por João Vitor Moreira Michelin

As medidas cautelares diversas da prisão são aplicadas ao longo do Inquérito Policial e da Ação Penal, com o objetivo de resguardar a aplicação da Lei Penal, a investigação e a instrução criminal, bem como evitar novas práticas de delitos. Conforme o Inciso II do artigo 282 do Código de Processo Penal, devem guardar correspondência com a gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do indiciado ou acusado. Esses princípios materializam a necessidade e proporcionalidade, impedindo o uso de medidas mais severas que o indispensável.

Essas medidas, por restringirem direitos fundamentais antes da condenação, exigem rigorosa cautela. Tanto é que a Lei condiciona a aplicação das medidas a pedido das partes, do Ministério Público, ou representação da autoridade policial. A aplicação de ofício pelo Juiz, antes permitida, foi suprimida para reforçar o sistema acusatório e a imparcialidade judicial. Assim, como regra, aquele que possa ser submetido à medida deve ter oportunidade de se manifestar previamente sobre sua legalidade.

Embora o artigo 319 do Código elenque as medidas cabíveis, parte da doutrina justifica a imposição de medidas não expressamente previstas na lei. Trata-se de entendimento que privilegia o “poder geral de cautela” atribuído ao Juiz, pelos artigos 297 , do Código de Processo Civil, e 3° , do Código de Processo Penal. A consunção desses dispositivos permite a aplicação da lei processual civil no rito penal, quando este se revela omisso ou suficiente para disciplinar determinado instituto jurídico.

Acontece que o artigo 319 dispõe apenas nove modalidades de medidas diversas da prisão. Frente à variedade de crimes e da complexidade dos casos apreciados pelo Judiciário, esse rol tem, na visão da jurisprudência, se demonstrado insuficiente para cumprir os objetivos do artigo 287. Por isso, a jurisprudência tem admitido a ampliação desse elenco, a fim de tornar efetivos os objetivos cautelares previstos no artigo 282.

Esta é a posição majoritária do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo. Conforme entendimento consolidado, “de acordo com a teoria dos poderes implícitos e do poder geral de cautela do magistrado, é possível a imposição de medidas cautelares atípicas como forma de dar efetividade às decisões judiciais” , e que “mesmo que não conste literalmente do rol positivado no art. 319 do CPP, o alcance das hipóteses típicas pode ser ampliado para, observados os ditames do art. 282 do CPP, aplicar medida constritiva adequada e necessária à espécie”.

A matriz pragmática desse entendimento se coaduna com a Doutrina majoritariamente adotada pelo Ministério Público, representado, neste artigo, pelo Doutor Renato Brasileiro de Lima: “a legalidade, na sua função de garantia, impede que se imponha uma medida restritiva de direito fundamental mais gravosa que não tenha previsão legal. Entretanto, considerando sua função precípua de garantia de direitos fundamentais, ela autoriza, para cumprir tal função, a alternatividade e a redutibilidade das medidas cautelares, objetivando uma medida alternativa menos gravosa. Ou seja, ao fazer uso do poder geral de cautela no processo penal, o juiz poderá ter uma alternativa não prevista em lei para se evitar uma desproporcional decretação da prisão cautelar que, assim, passa, inclusive, a ser uma opção de aplicação de hipótese cautelar mais benéfica ao acusado.”

Em sentido oposto, há entendimento, inclusive na Suprema Corte, do Célebre Ministro Celso de Mello, de que, em respeito à legalidade estrita inerente ao Processo penal, “inexiste, em nosso sistema jurídico, em matéria processual penal, o poder geral de cautela dos Juízes, notadamente em tema de privação e/ou de restrição da liberdade das pessoas”.

Tal posição é compartilhada pela doutrina garantista, que visa à limitação do poder punitivo do Estado, a fim de coibir abusos. Essa parte é frequentemente representada pelo Doutor Aury Lopes Jr., quando enunciou, por exemplo “não há a menor possibilidade de tolerar-se restrição de direitos fundamentais a partir de analogias, menos ainda com o processo civil, como é a construção dos tais “poderes gerais de cautela”. Toda e qualquer medida cautelar no processo penal somente pode ser utilizada quando prevista em lei (legalidade estrita) e observados seus requisitos legais no caso concreto”.

Em síntese, a tensão entre a legalidade estrita e o poder geral de cautela espelha o dilema do sistema penal contemporâneo: de um lado, a busca pela efetividade da persecução criminal; de outro, a contenção do poder punitivo estatal dentro dos limites constitucionais. É tema controverso, em última análise, decidido pelos Juízes, pois é a estes profissionais atribuído o pesado ônus de sopesar frequentemente os objetivos persecutórios e as garantias individuais.

Nesse ínterim, cabe ao advogado do investigado empreender os esforços necessários para demonstrar, fundamentadamente, a impertinência de determinada Medida Cautelar, quando esta se mostrar demasiadamente gravosa ou inaplicável, ou, ao contrário, sua pertinência e urgência, no caso do defensor da vítima – uma das principais interessadas na aplicação da justiça penal.