15
Maio
2024

Os fundamentos da decisão que homologou a sentença condenatória de Robinho – parte 4

Por Rafaela Otero

O Ministro Relator Francisco Falcão, em um voto bastante fundamentado, rebateu os argumentos defensivos e entendeu pela homologação da sentença condenatória.

Segundo o Ministro, o procedimento de homologação de sentença estrangeira prescinde da análise do mérito, eis que a análise é limitada aos requisitos formais da sentença, previstos nos artigos 963 do CPC, 17 da LINDB e 216-C a 216-F do RISTJ e, tratando-se de transferência de execução de pena, também os requisitos previstos no artigo 100 da Lei nº 13.445/2017 (Lei da Migração)[1] e que todos os requisitos foram atendidos.

Com base em entendimento já compartilhado neste artigo, o Ministro alegou que a transferência de execução penal é um instituto processual de cooperação internacional, previsto em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, o que resultou na Lei nº 13.445/2017, que contempla de maneira expressa o que já consta nestes tratados.

O pedido é constitucionalmente aceito, uma vez que a Constituição Federal, ao vedar a extradição de brasileiro nato (artigo 5º, LI), não impede o deferimento da transferência de execução a brasileiro nato. Isso ocorre porque não se trata de entregar o indivíduo à jurisdição estrangeira e o cumprimento da pena no próprio país, em tese, resguarda os direitos e garantias do nacional, garantindo que ele cumpra a pena perto da família e seja assessorado por seus defensores.

O entendimento de que a Lei da Migração somente seria aplicável a estrangeiros no Brasil não reflete o posicionamento dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, até porque impediria a transferência de execução de nacionais que foram condenados no exterior e querem cumprir a pena no Brasil.

O artigo 100 da Lei de Migração buscou possibilitar a transferência de execução da pena imposta no exterior tanto a brasileiros, natos ou naturalizados, quanto a estrangeiros que tiverem residência habitual ou vínculo pessoal no Brasil.

De acordo com o princípio da lei mais benéfica, na impossibilidade de atender integralmente ao pedido de cooperação, como foi o caso da extradição, cabe ao Brasil buscar meios de cumprir ainda que parcialmente e evitar a impunidade de brasileiros natos, assegurando a eficácia da jurisdição penal, como anteriormente foi manifestado expressamente pelo Brasil, com base no artigo 6º, 1 do Tratado de Extradição.

Argumentar que não haveria impunidade, pois o artigo 6, 1 do Tratado de Extradição entre o Brasil e a Itália prevê a instauração de procedimento penal no país requerido em caso de negativa de extradição e desconhecer que já houve julgamento e condenação pela Itália e, por isso, não é possível haver outro julgamento pelos mesmos fatos, com base no princípio do ne bis in idem, taxativamente mencionado no artigo 100 da Lei 13.445/2017.

O Ministro Francisco Falcão também rebate o argumento defensivo de que não haveria tratado internacional que permita a execução, porém, fundamenta que o tratado de assistência mútua entre Brasil e Itália (MLAT de 1989, Decreto nº 862/1993) não impede a transferência de execução e que o Tratado de Extradição entre Brasil e Itália, do mesmo ano, prevê a recusa facultativa no artigo 6, 1 do Tratado de Extradição.

Ainda que exista coerência em seus argumentos, é preciso que se relembre as mudanças nas relações internacionais de 1989 até 2024. Atualmente é reconhecido pelo Brasil o dever internacional de cooperar, posição expressa com a assinatura dos Tratados de Viena, Palermo e Mérida, bem como pela Lei 13.445/2017. Vale dizer, em respeito ao dever internacional de cooperação, cooperar é a regra e a recusa precisa ser motivada, não sendo possível somente argumentar que inexiste tratado internacional.

Para que o Brasil pudesse recusar ao pedido, como fez com o pedido de extradição, seria necessário haver expressamente a proibição da transferência de execução de pena estrangeira, em norma de igual hierarquia dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, ou, então, haver violação justificada aos princípios de ordem pública e reserva legal, não podendo arguir genericamente a recusa com base nestes princípios.

Por fim, o Ministro entendeu pela retroatividade da Lei nº 13.445/2017, o que, particularmente, entendemos ser o argumento mais frágil. Ainda que a Lei da Migração tenha natureza jurídica de cooperação internacional e, portanto, processual, existem decisões do STJ e STF no sentido da irretroatividade de lei processual penal quando isso represente prejuízo ao réu. No entanto, considerando o entendimento expresso do Brasil pelo dever internacional de cooperação e que a Lei nº 13.445/2017 somente consolidou este entendimento, a aplicação da Lei nº 13.445/2017 não representaria prejuízo ao réu e pode ser aplicada a fatos pretéritos.

O voto do Ministro Francisco Falcão foi acompanhado pelos Ministros Humberto Martins, Herman Benjamin, Luís Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Maria Isabel Galloti, Antônio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Bôas Cueva e Sebastião Reis Júnior,

Em relação ao cumprimento da pena, a maioria decidiu pelo imediato cumprimento da sentença estrangeira.

Posição contrária – indeferimento do pedido de homologação da sentença estrangeira.

Votaram contra o pedido de homologação da sentença estrangeira os Ministros Raul Araújo e Benedito Gonçalves. Para evitar repetições, irei somente falar daqueles que ainda não analisamos no decorrer do artigo.

De acordo com o Ministro Raul Araújo, em uma consideração prévia interessante, as garantias constitucionais não podem ser mitigadas com base em uma interpretação consequencialista. Ou seja, ainda que se trate de um crime grave envolvendo um brasileiro conhecido no mundo todo, não é possível interpretar a lei, violando garantias constitucionais, para que atenda o interesse público de punição. Sobre este assunto é possível dedicar um artigo inteiro, porém, nos limitaremos a rebater este argumento pelo aclamado dever internacional de cooperar.

Sendo o Brasil signatário de tratados de direitos humanos, entre eles, a Convenção de Belém do Pará de 1994[2], se comprometeu em contribuir para proteger os direitos da mulher e eliminar as situações de violência contra ela, a interpretação da lei pela transferência de execução da pena, evitando-se a impunidade, deixa de ser consequencialista e representa o entendimento internacional pela defesa dos direitos humanos, em alusão aos direitos da vítima.

Já o segundo motivo adotado para indeferir o pedido italiano é o artigo 9º da Código de Penal, que trata da eficácia de sentença estrangeira. O referido artigo estabelece que a sentença estrangeira pode ser homologada para efeitos civis e sujeita a medida de segurança.

Ainda que o artigo não proíba expressamente a homologação da sentença para aplicação da sanção criminal, a redação do artigo indica que não seria cabível a homologação de sentença estrangeira para a transferência de execução.

Ocorre que a inclusão do artigo 9º no Código Penal se deu em 1984, quando o Brasil estava em meio a uma ditadura militar e princípios de territorialidade e soberania tinham prevalência em relação aos demais, especialmente, em relação aos direitos humanos. Não é possível manter um entendimento retrógrado como o previsto neste artigo após 40 anos, quando houve uma mudança significativa nas relações internacionais e em respeito aos direitos humanos. O disposto no artigo 9º do Código Penal não reflete a posição atual brasileira sobre a harmonização da legislação aos preceitos internacionais e sua aplicação no ordenamento pátrio, o que pode ser facilmente confirmado pelo Código de Processo Civil de 2015, artigo 26, caput e §2º e artigo 27[3].

Conclusão

Após uma exaustiva análise do pedido de transferência de execução da pena do ex-jogador Robinho, dando ênfase ao acórdão de homologou o pedido, torna-se evidente que a decisão do STJ no HDE nº 7986 é acertada e representa o entendimento internacional pelo dever de cooperação entre países.

O Brasil como signatário de tratados e convenções internacionais de direitos humanos não pode utilizar-se de posicionamentos retrógrados, como o princípio da territorialidade ou soberania nacional, para justificar a recusa em um pedido de cooperação internacional, sobretudo quando a recusa representa a impunidade de um nacional com condenação transitada em julgado.

A transferência de execução não equivale a extradição, assegurando o cumprimento da lei penal e o respeito aos direitos e garantias tanto do condenado quanto da vítima. O Estado brasileiro não pode ser conivente com a violação de direitos humanos, sob pena de violar os tratados e convenção de que é signatário, prejudicando sua posição internacional em relação aos demais países.

O procedimento de transferência de execução da pena é aceito pelo Brasil, signatário de outros tratados e convenções que o preveem e a Lei da Migração somente consolidou este entendimento, não havendo se imiscuir do seu cumprimento com base leis antigas e retrógradas, que estão superadas pela atual conjuntura nacional e internacional.

Sendo assim, ainda que posicionamentos internos possam interferir na interpretação da decisão do STJ no caso Robinho, seja como mulheres ou como advogadas criminalistas de defesa, a conclusão é a de que o STJ tomou a decisão que representa o atual dever internacional de cooperar e está em consonância com a valorização dos direitos humanos no âmbito internacional.

[1] Art. 963. Constituem requisitos indispensáveis à homologação da decisão:

I – ser proferida por autoridade competente;

II – ser precedida de citação regular, ainda que verificada a revelia;

III – ser eficaz no país em que foi proferida;

IV – não ofender a coisa julgada brasileira;

V – estar acompanhada de tradução oficial, salvo disposição que a dispense prevista

em tratado;

VI – não conter manifesta ofensa à ordem pública.

Parágrafo único. Para a concessão do exequatur às cartas rogatórias, observar-se-ão os

pressupostos previstos no caput deste artigo e no art. 962, § 2º.

Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de

vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem

pública e os bons costumes.

Art. 216-C. A homologação da decisão estrangeira será proposta pela parte

requerente, devendo a petição inicial conter os requisitos indicados na lei processual, bem

como os previstos no art. 216-D, e ser instruída com o original ou cópia autenticada da

decisão homologanda e de outros documentos indispensáveis, devidamente traduzidos por

tradutor oficial ou juramentado no Brasil e chancelados pela autoridade consular brasileira

competente, quando for o caso.

Art. 216-D. A decisão estrangeira deverá:

I – ter sido proferida por autoridade competente;

II – conter elementos que comprovem terem sido as partes regularmente citadas ou ter

sido legalmente verificada a revelia;

III – ter transitado em julgado.

Art. 216-E. Se a petição inicial não preencher os requisitos exigidos nos artigos

anteriores ou apresentar defeitos ou irregularidades que dificultem o julgamento do mérito,

o Presidente assinará prazo razoável para que o requerente a emende ou complete.

Parágrafo único. Após a intimação, se o requerente ou o seu procurador não

promover, no prazo assinalado, ato ou diligência que lhe for determinada no curso do

processo, será este arquivado pelo Presidente.

Art. 216-F. Não será homologada a decisão estrangeira que ofender a soberania

nacional, a dignidade da pessoa humana e/ou a ordem pública.

Tratando-se de transferência de execução de pena também devem ser observados os

requis itos previstos no art. 100 da Lei n. 13.445/2017, que assim dispõe:

Seção II

Da Transferência de Execução da Pena

Art. 100. Nas hipóteses em que couber solicitação de extradição executória, a

autoridade competente poderá solicitar ou autorizar a transferência de execução da pena,

desde que observado o princípio do non bis in idem .

Parágrafo único. Sem prejuízo do disposto no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro

de 1940 (Código Penal), a transferência de execução da pena será possível quando

preenchidos os seguintes requisitos:

I – o condenado em território estrangeiro for nacional ou tiver residência habitual ou

vínculo pessoal no Brasil;

II – a sentença tiver transitado em julgado;

III – a duração da condenação a cumprir ou que restar para cumprir for de, pelo

menos, 1 (um) ano, na data de apresentação do pedido ao Estado da condenação;

IV – o fato que originou a condenação constituir infração penal +. perante a lei de ambas

as partes; e

V – houver tratado ou promessa de reciprocidade.

[2] Decreto nº 1973 de 1996.

[3] Art. 26. A cooperação jurídica internacional será regida por tratado de que o Brasil faz parte e observará:

I – o respeito às garantias do devido processo legal no Estado requerente;

II – a igualdade de tratamento entre nacionais e estrangeiros, residentes ou não no Brasil, em relação ao acesso à justiça e à tramitação dos processos, assegurando-se assistência judiciária aos necessitados;

III – a publicidade processual, exceto nas hipóteses de sigilo previstas na legislação brasileira ou na do Estado requerente;

IV – a existência de autoridade central para recepção e transmissão dos pedidos de cooperação;

V – a espontaneidade na transmissão de informações a autoridades estrangeiras.

§ 1º Na ausência de tratado, a cooperação jurídica internacional poderá realizar-se com base em reciprocidade, manifestada por via diplomática.

§ 2º Não se exigirá a reciprocidade referida no § 1º para homologação de sentença estrangeira.

§ 3º Na cooperação jurídica internacional não será admitida a prática de atos que contrariem ou que produzam resultados incompatíveis com as normas fundamentais que regem o Estado brasileiro.

§ 4º O Ministério da Justiça exercerá as funções de autoridade central na ausência de designação específica.

Art. 27. A cooperação jurídica internacional terá por objeto:

I – citação, intimação e notificação judicial e extrajudicial;

II – colheita de provas e obtenção de informações;

III – homologação e cumprimento de decisão;

IV – concessão de medida judicial de urgência;

V – assistência jurídica internacional;

VI – qualquer outra medida judicial ou extrajudicial não proibida pela lei brasileira.