15
jul
2024

STF fixa entendimento para admitir a possibilidade de celebração de Acordo de Não Persecução Penal em crimes militares

Por Gabriela de Matos Costa Pinto

Em maio de 2024, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) fixou entendimento de que o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) pode ser oferecido em processo da Justiça Militar. O colegiado entendeu, por unanimidade, que como não há proibição expressa, sua aplicação é uma possibilidade, seguindo o raciocínio do princípio da legalidade, qual seja, “o que não é proibido, é permitido”.

Nesse sentido, o entendimento fixado pelo STF teve influência do ministro Edson Fachin, que explanou seu entendimento de que negar de forma genérica a um investigado na Justiça Militar a chance de celebrar o ANPP contraria os princípios do contraditório, da ampla defesa, da duração razoável do processo e da celeridade processual.

O Ministro complementou, ainda, pontuando que o próprio Código de Processo Penal Militar, apesar de não tratar desse assunto em específico, estabelece em seu artigo 3º, alínea “a”, que: “Os casos omissos neste Código serão supridos:

a) pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e sem prejuízo da índole do processo penal militar; […]”.

Para melhor compreensão acerca do tema, faz-se necessário esclarecer, também, o que é o Acordo de Não Persecução Penal, um instituto de negociação introduzido pela Lei nº 13.964/2019, que se propôs a aperfeiçoar a legislação penal e processual penal com o intuito de desafogar o sistema judiciário e proporcionar maior eficiência na aplicação de penas. Sentido em que discorre o Doutrinador Aury Lopes Júnior¹: “[…] se fizermos um estudo dos tipos penais previstos no sistema brasileiro e o impacto desses instrumentos negociais, o índice supera a casa dos 70% de tipos penais passíveis de negociação, de acordo. Portanto, estão presentes todas as condições para um verdadeiro “desentulhamento” da justiça criminal brasileira […]”

Essa inovação, disposta no art. 28-A do Código de Processo Penal, incluiu no ordenamento jurídico a possibilidade de que o Ministério Público deixe de propor ação penal e celebre o ANPP com o investigado uma vez presentes os requisitos: a) do crime ter sido cometido sem violência ou grave ameaça; b) da pena mínima ser inferior a quatro anos; c) do autor ter confessado a prática do delito; d) não ser reincidente ou não ter sido beneficiado por acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo nos 05 anos anteriores ao cometimento do fato.

Ocorre que a alteração trazida no Código de Processo Penal foi omissa quanto à aplicação deste instituto no âmbito da Justiça Militar que, como se sabe, segue um procedimento especial, com leis próprias e particularidades. Por essa razão, este se tornou um tema controverso no campo jurídico, ainda que a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal tenha fixado recente entendimento no sentido de admitir a celebração do ANPP na Justiça Militar, existem aqueles que entendem que o art. 28-A do CPP não poderia ser interpretado de forma extensiva, não se admitindo a celebração do ANPP na Justiça Militar.

Como fundamento para esta segunda interpretação jurídica, a impossibilidade de aplicação do ANPP em uma Justiça específica se daria em razão da incompatibilidade deste com os princípios indissociáveis da disciplina, quais sejam da hierarquia, da jurisdição e da especialidade, isto é, dada a independência funcional da Justiça Militar.

Assim, este entendimento fundamenta-se nas consequências decorrentes da distinção entre acusações de crimes militares (regidos pelo Código Penal Militar) e crimes “comuns”; (previstos no Código Penal ou em leis penais especiais) que são de competência da Justiça Militar da União.

Neste sentido, opinou o Juiz Federal da Justiça Militar Wendell Petrachim Araujo², que o Princípio da Especialidade, que norteia a interpretação dos crimes militares, deve ser compreendido no sentido da existência de um regramento específico e particularizado de tutela, isto é, se diferencia em seu aspecto material dos demais crimes.

Além disso, o Juiz ressalta que um delito não se torna “especial”; simplesmente por ser julgado em uma instância especializada, como é o caso da Justiça Militar da União. O que verdadeiramente caracteriza essa peculiaridade é a decisão do legislador na esfera da política criminal, ao conceder um tratamento jurídico específico a certas normas penais destinadas a proteger interesses considerados importantes o suficiente para merecerem uma tutela jurídica diferenciada por parte do Estado, conforme previsto no Código Penal Militar.

Sob este aspecto, portanto, se justifica que o Acordo de Não Persecução Penal não pode ser firmado em sede de Justiça Militar uma vez que esta interpretação do princípio da especialidade impediria a aplicação de institutos externos que alterariam a natureza do delito ou a essência do processo penal militar, afastando a aplicabilidade de institutos não concebidos na legislação especial, salvo para suprir omissões não eloquentes, o que não condiz com o caso do Acordo de Não Persecução Penal (art. 28-A do CPP).

Todavia, mesmo em face de tamanha controvérsia, entende-se que a decisão do STF abre caminho para a utilização do instrumento do ANPP em crimes militares de menor gravidade, desde que não haja ofensa aos bens jurídicos mais relevantes atinentes à disciplina militar, de forma a também proteger determinados interesses considerados dignos de uma tutela jurídica particular por parte do Estado, nos termos do Código Penal Militar.

Diante do apresentado, conclui-se que a aplicação do ANPP na Justiça Militar ainda gera debates. Enquanto alguns juristas defendem sua constitucionalidade, outros levantam preocupações quanto à sua compatibilidade com os princípios da disciplina e hierarquia militar. Apesar das dúvidas, entretanto, a decisão do STF representa um passo importante para a implementação de um sistema processual penal mais célere, eficiente e menos gravoso para o Estado e para o acusado em crimes militares de menor gravidade.

1 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 20. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023.

2 Cartilha ANPP – Acordo de Não P. Ministério Público Militar. Disponível em:

https://www.mpm.mp.br/publicacao/cartilha-anpp/