31
jul
2024

Supremo Tribunal Federal descriminaliza o porte de maconha para uso pessoal no Brasil

Por Gabriela de Matos Costa Pinto

Em julgamento histórico, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu tese de repercussão geral, no dia 26 de junho de 2024, pela descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal no país, estabelecendo um marco na luta por direitos humanos e saúde pública no Brasil.

A decisão, tomada por maioria de 7 votos a 4, reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que criminalizava a posse de qualquer quantidade de substância ilícita, passando a presumir como usuário aquele que adquirir, guardar, depositar ou transportar até 40 (quarenta) gramas de cannabis sativa ou seis plantas fêmeas.

Pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, portanto, votaram os Ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, e Carmen Lúcia. Os Ministros André Mendonça e Nunes Marques votaram contra a descriminalização e pela constitucionalidade do artigo 28, enquanto Cristiano Zanin apoiou a iniciativa de estabelecer uma quantidade para diferenciar o porte para uso pessoal do tráfico de drogas.

Dias Toffoli, por sua vez, votou pela constitucionalidade do artigo 28, mas defendeu a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal. Finalmente, pela fixação de parâmetros objetivos para distinguir usuários de traficantes, até que os poderes Legislativo e Judiciário atuem, votaram Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Rosa Weber e Carmen Lúcia.

Durante a discussão e tomada de decisão pelo STF acerca do tema 506, os Ministros salientaram que a fixação da quantidade de até 40 (quarenta) gramas de maconha, ou de seis plantas fêmeas, para presunção de posse para uso pessoal deve ser relativa.

A polícia tem permissão para confiscar a droga e levar a pessoa à delegacia mesmo se possuir quantidades abaixo desse limite estabelecido, especialmente no caso em que existem outros indícios que corroboram para a classificação de suposto tráfico, tal como embalagens, variedade de substâncias ilícitas apreendidas, balanças e registros de atividades comerciais suspeitas.

Nesse contexto, incumbe ao delegado explicar detalhadamente as razões para contestar a presunção de posse para uso pessoal, não podendo se basear em critérios subjetivos, sob o risco de ser responsabilizado juridicamente. Ainda, o juiz do caso também possui competência na decisão de retirar a acusação de crime nos casos em que a quantidade apreendida for superior a 40 gramas, desde que haja provas suficientes de que a pessoa se enquadra na condição de usuário.

Em razão de tamanha mudança, os Ministros decidiram que o Conselho Nacional de Justiça, em colaboração com o Executivo e o Legislativo, precisa tomar medidas para garantir o cumprimento da decisão, além de realizar mutirões nas prisões em parceria com a Defensoria Pública, a fim de investigar e corrigir detenções que foram determinadas de forma inadequada. O grupo também fez um apelo para a melhoria das políticas destinadas ao tratamento de dependentes químicos, com especial ênfase na recuperação contínua e necessária dos usuários. Neste sentido, enfatizou o Ministro Luís Roberto Barroso em seu voto:

“Não há defensores do uso de drogas no Supremo Tribunal Federal. Pelo contrário, desencorajamos fortemente o consumo. As drogas ilícitas são prejudiciais.
[…]

Estamos discutindo a melhor maneira de lidar com esse problema e reduzir seus impactos na sociedade. Constatamos que a falta de critérios distintivos tem sido uma má política pública.”.[1]

Tem-se, diante do apresentado, que a questão das drogas não pode ser enfrentada de maneira superficial: ela interfere diretamente no bem-estar social, na saúde, na qualidade dos serviços públicos prestados, além de ser uma área que exige grande investimento estatal.

O reconhecimento do fracasso da guerra às drogas, portanto, foi necessário para compreensão da possibilidade de adoção de meios alternativos à criminalização para combater o consumo de drogas ilícitas. Além disso, essa postura se mostrou ineficaz e prejudicial à sociedade, tendo em vista que proporcionou o aumento da criminalidade com a amplificação e fortalecimento do tráfico, violando direitos humanos ao passo em que encarcera desproporcionalmente jovens, negros e pobres, além da estigmatizar os usuários.

Este pensamento, portanto, levou à conclusão de que a criminalização não inibe o consumo de drogas, mas dificulta o acesso a tratamento e serviços de saúde, direito fundamental previsto na Constituição Federal. Além disso, também acaba por sobrecarregar o sistema prisional, comprometendo as condições carcerárias e dificultando a ressocialização.

Assim, apesar de a conduta de porte de maconha para consumo pessoal continuar sendo ilícita no âmbito extrapenal, ou seja, sujeita a medidas administrativas e sanções, a sua descriminalização parte do reconhecimento da necessidade de um novo modelo de abordagem à questão das drogas, focado em políticas públicas de saúde, prevenção e redução de danos.

Desta maneira, restam claros os impactos que a criação de um estigma criminal tem sobre o usuário de drogas ilícitas, ocasionando a ausência de tratamento e a desatenção estatal quanto ao bem jurídico que se pretendia tutelar com a criminalização desta conduta: a saúde pública, a dignidade da pessoa humana, o bem-estar social etc.

A decisão do STF, então, se deu pelo entendimento de que a descriminalização deve levar à diminuição do número de prisões por porte de drogas, liberando recursos policiais para o combate ao tráfico e a outros crimes mais graves, bem como abre caminho para a implementação de políticas públicas mais eficazes de saúde e prevenção, como tratamento de dependência e educação sobre drogas, além de liberar recursos do sistema prisional que podem ser direcionados para áreas como saúde, educação e segurança pública.

Por se tratar de tema sensível e ainda controverso, o STF também estabeleceu diretrizes para a descriminalização, mas caberá ao Congresso Nacional regulamentar a questão, inclusive estabelecendo as medidas administrativas e sanções a serem aplicadas aos casos de porte de maconha para consumo pessoal.

Assim, a implementação da descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal exigirá, necessariamente, investimentos em políticas públicas de saúde, prevenção e redução de danos, além de mudanças na cultura policial e na forma como a sociedade encara a questão das drogas.

Em concordância, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, por exemplo, declarou-se a favor da descriminalização das drogas. Durante audiência na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, em abril de 2023. O ministro argumentou que a decisão é parte de uma estratégia de combate ao crime organizado e que o uso de drogas é uma questão de saúde pública, não de natureza criminal. Além disso, o Ministro teria também afirmado em entrevista, que essa seria uma forma de reduzir a pressão sobre o sistema carcerário brasileiro.

Além de todo exposto, a decisão pela inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas funda-se, basicamente, em três fundamentos constitucionais. O primeiro deles trata da violação ao direito de privacidade, de forma que o que um indivíduo faz na sua intimidade, como regra, deve ficar na sua esfera de decisão e discricionariedade, especialmente quando não afeta esfera jurídica de terceiro.

Segundo, tem-se a violação à autonomia individual, que assegura aos indivíduos a sua autodeterminação, isto é, o direito de fazer suas escolhas existenciais com suas próprias concepções do bem e do bom. Em terceiro, portanto, aponta-se a violação ao princípio da proporcionalidade, que determina que, para que uma restrição a um direito seja legítima, ela precisa ser proporcional à lesividade da conduta incriminada.

Acerca deste último ponto, a discussão acaba por concluir que a conduta tipificada no art. 28 da Lei nº11.343/2006 não apresenta risco de lesão a bem jurídico alheio, de forma que a criminalização do consumo de maconha não se afigura legítimo, bem como se mostra prejudicial, afetando saúde pública.

Como bem discorre o Ministro Luís Roberto Barroso em seu voto, então:
“Em suma: por ausência de lesividade a bem jurídico alheio, por inadequação, discutível necessidade e, sobretudo, pelo custo imenso em troca de benefícios irrelevantes, a criminalização não é a forma mais razoável e proporcional de se lidar com o problema”.

Mais do que isso, nos termos do princípio da ofensividade, que exige que do fato praticado ocorra lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado, não se pune a autolesão. Nesse sentido, tem-se que cumpre ao Estado o papel de (i) desincentivar consumo; (ii) tratar os dependentes e (iii) combater o tráfico na sociedade, mas não o de privar os indivíduos de assumirem comportamentos que, quando muito, causam danos apenas ao seu usuário, que consentiu com a prática, e não a terceiros.

Assim, conforme proferido pelo Ministro Gilmar Mendes em seu voto, estando de um lado o direito coletivo à saúde e à segurança pública, e do outro o direito à intimidade e à vida privada – ou à autodeterminação, a conclusão é de que a restrição penal não se mostra necessária nem eficaz na proteção de nenhum destes direitos.
Ainda nas palavras do Ministro, pelas razões acima expostas, portanto:

“[…] tenho que a criminalização do porte de maconha para uso pessoal atinge, em grau máximo e desnecessariamente, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas várias manifestações, de forma, portanto, claramente desproporcional.”[2]

Conclui-se, então, que o julgamento do Tema 506 pelo STF representa um passo importante na busca por um Sistema Judiciário que se adeque a realidade brasileira, buscando promover e preservar os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

A descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal tem o potencial de reduzir a criminalidade, proteger os direitos humanos e promover e ampliar a efetividade da saúde pública. No entanto, é fundamental que esta decisão seja acompanhada e amparada de políticas públicas eficazes e de um amplo debate social, de forma que seus objetivos sejam plenamente alcançados.

[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 635659/SP– São Paulo. Repercussão geral no Recurso Extraordinário. Direito Penal. Tema 506. Voto do Ministro Roberto Barroso. Tipicidade do porte de droga para consumo pessoal. Existência de repercussão geral. Relator: Min. Gilmar Mendes, 21 de outubro de 2010. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/226686/ministros-fachin-e-barroso–votam-pela-descriminalizacao-do-porte-de-maconha-para-consumo-proprio Acesso em: 11 de julho de 2024.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 635659/SP– São Paulo. Repercussão geral no Recurso Extraordinário. Direito Penal. Tema 506. Voto do Ministro Relator Gilmar Mendes. Tipicidade do porte de droga para consumo pessoal. Existência de repercussão geral. Relator: Min. Gilmar Mendes, 21 de outubro de 2010. Disponível em: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/re-posse-drogas-pra-consumo-voto-gilmar-1.pdf. Acesso em: 11 de julho de 2024.