Por Liz Lima Estudino
O combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento de atividades ilícitas exige mecanismos eficientes de rastreamento patrimonial e monitoramento de operações financeiras. Nesse contexto, os Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs), elaborados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), têm ganhado destaque como instrumento fundamental de apoio às investigações criminais. O uso crescente desses relatórios em procedimentos, contudo, tem provocado debates relevantes quanto aos seus limites jurídicos, em especial no que se refere à possibilidade de acesso direto pelo Ministério Público ou pela Polícia, sem prévia autorização judicial.
Os RIFs são documentos produzidos com base em comunicações obrigatórias feitas por instituições financeiras e demais entes sujeitos à Lei nº 9.613/1998, sempre que forem identificadas operações suspeitas ou atípicas. Essas comunicações não envolvem, em regra, o fornecimento de extratos bancários ou dados fiscais completos, mas sim informações consolidadas, extraídas de movimentações que, por suas características, podem sugerir práticas ilícitas.
Todavia, a Constituição Federal assegura, no artigo 5º, inciso XII, a inviolabilidade do sigilo das comunicações de dados, sendo a quebra desse sigilo admitida apenas mediante ordem judicial. Apesar de o sigilo bancário não estar expressamente mencionado, é reconhecido pela jurisprudência como extensão dos direitos fundamentais à intimidade e à vida privada.
Tradicionalmente, portanto, entende-se que seu afastamento demanda controle judicial.
Essa lógica, contudo, foi relativizada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.055.941/SP, com repercussão geral reconhecida (Tema 990). Na oportunidade, o STF firmou a tese de que é constitucional o compartilhamento, sem autorização judicial, de dados bancários e fiscais obtidos pela Receita Federal no exercício regular de suas atribuições legais com o Ministério Público para fins penais. Embora o caso concreto envolvesse a Receita Federal, a tese firmada foi posteriormente estendida a outros órgãos de controle, como o Coaf e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), dado o caráter semelhante de suas funções institucionais.
Durante o julgamento, o relator, ministro Dias Toffoli, defendeu que o compartilhamento de dados obtidos de forma espontânea e legal pelos órgãos de controle não configura quebra de sigilo, mas sim fluxo de informações entre instituições públicas no cumprimento de deveres legais.
O Ministro destacou que não se trata de requisição arbitrária de dados sigilosos por parte das autoridades investigativas, mas sim de cooperação institucional entre entes que, por lei, detêm competência para monitorar atividades econômicas e comunicá-las às autoridades competentes.
Outros ministros, como Rosa Weber e Gilmar Mendes, manifestaram preocupação quanto à proteção de dados sensíveis e à necessidade de prevenir abusos investigativos. As discussões giraram, principalmente, em torno da distinção entre o compartilhamento espontâneo de dados obtidos no curso das atividades regulares do órgão de controle e a requisição dirigida e personalizada, feita pelo Ministério Público ou pela Polícia, com base em parâmetros específicos de uma investigação em andamento. No primeiro caso, prevalece o entendimento de que não há violação de sigilo. Já no segundo, pode haver necessidade de autorização judicial, para garantir o respeito ao devido processo legal e às garantias fundamentais do investigado.
Em outra decisão do STJ, no julgamento do RHC 147.707/PA, assentou uma diferenciação essencial: o compartilhamento espontâneo de informações obtidas dentro das atribuições legais do Coaf e de outros órgãos de controle é constitucional e não exige autorização judicial; por outro lado, quando houver requisição específica e oriunda de uma investigação em curso, há risco de configuração de verdadeira quebra de sigilo, o que atrai a exigência de controle jurisdicional.
Mais recentemente, no final de junho de 2025, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça reafirmou esse entendimento ao julgar Recurso Ordinário em Habeas Corpus (STJ, RHC n. 2190920-57.2024.8.26.0000). No caso, a Polícia Federal havia solicitado diretamente ao Coaf a produção de RIFs, inclusive antes da instauração formal do inquérito policial, sem previa autorização judicial. Apesar de reconhecer que a continuidade das investigações pela PF não era, por si só, ilegal, o STJ declarou a ilicitude da requisição direta dos relatórios financeiros, determinando o desentranhamento dos RIFs e das provas deles derivadas. A decisão reforça o entendimento de que o Tema 990 da repercussão geral não autoriza requisições específicas de dados protegidos por sigilo bancário ou financeiro sem o devido controle jurisdicional.
A relevância e a urgência do tema atingiram novo patamar com o recente pedido da Procuradoria-Geral da República ao STF para suspender todas as ações que questionam a legalidade da requisição direta de RIFs pelo Ministério Público e pela Polícia. Apresentada em julho de 2025, a medida mostra o impacto das decisões que anulam provas e travam investigações. Ao pedir a suspensão dos prazos prescricionais e a uniformização pelo Tema 1440, a PGR busca garantir o uso dos RIFs na persecução penal, diante da crescente judicialização.
Com isso, consolida-se a distinção entre o compartilhamento espontâneo e institucional de informações por parte dos órgãos de controle admissível sem ordem judicial, e a requisição específica e direcionada por órgãos de persecução penal, a qual exige autorização judicial sob pena de ilicitude da prova.
Dessa forma, observa-se que o compartilhamento dos Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) pelo Coaf com os órgãos de persecução penal é admitido sem autorização judicial apenas quando realizado de maneira espontânea, no exercício regular de suas competências legais.
Por outro lado, a requisição direta e específica desses documentos pelo Ministério Público ou pela Polícia, vinculada a uma investigação em curso, exige controle jurisdicional prévio, sob pena de violação ao sigilo financeiro e consequente ilicitude da prova.
Esse entendimento estabelece um marco importante para a segurança jurídica das investigações que envolvem dados financeiros sensíveis. Ao mesmo tempo em que fortalece os mecanismos de combate à criminalidade econômica, também preserva as balizas constitucionais impostas à atuação estatal.